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Semana de Arte Moderna, 100 anos: controvérsias sacudiram o movimento por dentro e por fora

Livros mostram as discordâncias de inimigos e aliados do movimento, incluindo o fogo amigo que dividiu grupos e ampliou suas ideias estéticas
Graciliano Ramos. Escritor pesquisou autores eclipsados pelo movimento modernista por não terem se se alinhado totalmente Foto: Arquivo
Graciliano Ramos. Escritor pesquisou autores eclipsados pelo movimento modernista por não terem se se alinhado totalmente Foto: Arquivo

O futurismo é um caminho a ser adotado? A figura de Peri deveria ser resgatada? O que é a identidade artística nacional? A controvérsia está no centro da história do modernismo. Algumas duram até hoje — como, por exemplo, a real contribuição de Graça Aranha ao movimento. Livros lançados no centenário da Semana de 22 mostram como os modernistas usaram polêmicas para afirmar suas ideias e romper com os padrões estéticos da época. Na mesma linha, as publicações também iluminam as “tretas” internas, que se espalharam entre os próprios expoentes do grupo, ampliando as suas ideias, e os ataques externos, promovidos por seus detratores.

Afinal, percorrer os acontecimentos e bastidores daquele momento histórico, como faz o recém-lançado “Semana da Arte Moderna: antes do começo, depois do fim” (Estação Brasil), de José e Lucas di Nicola, é também percorrer suas disputas —internas e externas. A palavra “polêmica” aparece 37 vezes no livro.

— No início do processo de criação da Semana de 22, as polêmicas foram fundamentais para que se colhessem frutos imediatos, consolidando grupos de artistas e escritores com ideias em comum que se opunham a outras propostas majoritárias — diz Lucas de Nicola. — A Semana foi um grande grito, e as polêmicas ajudaram seus expoentes a se afirmarem diante dos seus opositores. Mas os grupos modernistas nunca foram homogêneos. Dentro deles havia ideias diferentes que futuramente iam se manifestar de formas diferentes.

As brigas internas do movimento estão escancaradas em outro lançamento importante, o inédito “Diário confessional” (Companhia das Letras), de Oswald de Andrade, que é revelado ao público quase 70 anos após a sua morte. Escritas entre as décadas de 1940 e 1950, as anotações do maior polemista do grupo atacam outras figuras de proa do modernismo, incluindo colegas próximos. “Ao contrário do que quer a crítica, sempre me julguei mais importante que Mário de Andrade”, escreve. Já Menotti Del Picchia é descrito como um traidor profissional.

Nomes de fora do modernismo também são alvos do autor do manifesto antropofágico. Para Oswald, Monteiro Lobato era usado pelos antimodernistas para puxar o bonde contra o movimento — ou, em suas próprias palavras: “um asno atrelado à carroça da reação”. O desapreço era recíproco. Lobato começou a se afastar dos modernistas ainda em 1917, após a publicação do artigo “Paranoia ou mistificação?”, em que o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo usa uma exposição de Anita Malfatti para fazer críticas aos modernistas. Foi o início de uma polêmica que se desdobraria em muitas partes, como mostra em detalhes o livro “Semana da Arte Moderna: antes do começo, depois do fim”.

Diversos tipos de críticos

Outra pedra no sapato do modernismo foi Graciliano Ramos. Como lembra Lucas di Nicola, há diversos tipos de críticos dos modernistas: os reacionários, que se opunham à própria ideia de modernidade; os que só tinham implicância com os seus expoentes; e aqueles que concordavam com a necessidade de mudanças, mas não no caminho desejado por Mário, Oswald e companhia.

Graciliano, que estava na terceira categoria, escreveu diversos textos ao longo da sua vida expondo suas diferenças com a turma de 22. Eles foram agora reunidos em “O antimodernista: Graciliano Ramos e 1922” (Record), com organização de pesquisadores Tiago Mio Salla e a Ieda Lebensztein. Na verdade, a bronca do alagoano é a da geração de 30 como um todo, que iria se afirmar sobre a geração de 22. Uma das principais queixas é a de que o modernismo teria definido todas as bases para que os autores da década seguinte se impusessem.

— Graciliano se voltou contra a construção do cânone de 22 — diz Mio Salla, que cita Gilberto Freyre e Jorge Amado como outros autores da geração de 30 que pensavam parecido com o alagoano. — Ele acreditava que o modernismo foi um movimento disruptivo que não soube construir nada, apenas destruir. No máximo, conseguia reconhecer que essa destruição teria permitido uma prosa mais solta, como a de Jorge Amado.

Em comum com os modernistas, havia a recusa do beletrismo de um Coelho Neto. Porém, o sempre enxuto Graciliano defendia uma depuração da linguagem, considerando obras como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, um exemplo a não ser seguido. No fim da vida, ele se dedicou a pesquisar em diversos estados os autores pré-modernistas que, mesmo apresentando uma prosa com características modernas, acabaram eclipsados pelo movimento por não terem se se alinhado totalmente com ele.

— Ele queria recuperar autores do passado que foram amaldiçoados pela retórica modernista, como se tudo antes de 22 fosse Coelho Neto — explica Mio Salla.