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Sensação da literatura japonesa, Sayaka Murata retrata padronização robótica de seu país

Autora vendeu 700 mil exemplares com 'Querida konbini', romance que sai agora no Brasil
Antes do reconhecimento, Sayaka Murata trabalhou duas décadas em uma loja de conveniência; experiência inspirou seu romance "Querida konbini" Foto: Kentaro Takahashi / Divulgação
Antes do reconhecimento, Sayaka Murata trabalhou duas décadas em uma loja de conveniência; experiência inspirou seu romance "Querida konbini" Foto: Kentaro Takahashi / Divulgação

RIO — Ao vencer o mais importante prêmio literário do Japão, por seu romance “Querida konbini”, em 2016, Sayaka Murata poderia ter relaxado e aproveitado a fama. Porém, mesmo após receber os 1 milhão de yenes (cerca de R$ 36 mil) da láurea e ver seu livro virar best-seller em seu país, a escritora continuou, durante meses, trabalhando em uma loja de conveniências, onde estava empregada há quase duas décadas. Ninguém entendeu na época, mas, em se tratando de Sayaka, é assim mesmo.

Aos 39 anos, a mais badalada autora japonesa do momento é dona de uma personalidade incomum. Seus escritos não ficam por menos. “Querida konbini”, que ganha em junho a sua segunda edição no Brasil, é baseado na própria experiência de Sayaka como funcionária em uma konbini — lojas que vendem doces, bebidas e lanches 24 horas por dia.

O romance conta a história de Keiko, uma mulher autocentrada e solitária, que desde jovem tem dificuldades de se adaptar ao seu entorno. Ao conseguir um emprego em uma konbini, encontra no trabalho mecânico e estéril um lugar no mundo e um propósito na vida. Tanto que acaba ficando 18 anos na função, normalmente destinada a estudantes e adultos desempregados em busca de bicos temporários, para desespero de sua família.

Como a própria protagonista, Sayaka também foi uma estudante “tímida”, e só viu sua personalidade florescer depois de ser aceita no mundo das kombinis.

— Ao começar a trabalhar nessas lojas, era como se tivesse me transformado em um garotinho — conta a escritora. — Passei a encarar as coisas com um sentimento de leveza. A loja de conveniência é um local de trabalho sem muita discriminação de gênero, então acho que ao trabalhar lá pude cultivar minha própria individualidade.

Ao compor Keiko, Sayaka não economizou na estranheza. Quando criança, a personagem bate com uma pá na cabeça de um colega, com o objetivo de por fim em uma disputa entre brigões. Para a sua perplexidade, acaba repreendida. Ela cresce sem entender as regras de convivência e os códigos tácitos da sociedade e, afastada de tudo e de todos, anseia em se tornar uma pessoa normal, ou, como ela mesmo diz, “se curar”.

Microcosmo do país

Certa tarde, ao cruzar por acaso com uma konbini, deixa-se seduzir pelo domínio da organização dos itens nas prateleiras, do calendário de promoções e do trato com clientes problemáticos. Ao se tornar funcionária do lugar, sente-se enfim “parte da máquina do mundo”. Há cerca de 50 mil lojas do tipo espalhadas pelo país oriental; a partir desse microcosmo tão japonês, Sayaka aborda as normas que são impostas para alguém ser considerado normal, tendo por pano de fundo o Japão contemporâneo.

Para a escritora, a rotina padronizada destes ambientes, com regras de tratamento para a recepção dos clientes, para a higiene do espaço e para a ordenação dos produtos torna seus funcionários quase “robóticos”. Este automatismo, acredita ela, diz muito sobre “a vida e o temperamento” do seu país, que, em seu entendimento, suprime a esquisitice e o desvio de sua vida pública.

— No Japão de hoje, acho que, exceto para aqueles que tenham assumido completamente a personagem da “pessoa estranha” e que não tentam parecer reconfortantes aos outros, não há muitos lugares que acolham aqueles que levam uma vida mais curiosa — conta a autora.

Sayaka Murata: autora retrata um Japão sem espaço para pessoas fora da normalidade Foto: Kentaro Takahashi / Divulgação
Sayaka Murata: autora retrata um Japão sem espaço para pessoas fora da normalidade Foto: Kentaro Takahashi / Divulgação

Entre outros temas do livro está a sexualidade, ou a falta dela. Assim como boa parte dos compatriotas da sua faixa etária — segundo um estudo da Universidade de Tóquio de 2015, um quarto dos jovens adultos japoneses é virgem — Keiko é celibatária. Ela, no entanto, não sofre por isso; quando muito, a incomoda a pressão de amigas e parentes. Ela, no entanto, não sofre por isso; quando muito, a incomoda a pressão de amigas e parentes.

— Gosto de pensar que os jovens que aparecem nas coisas que escrevo não são necessariamente desprovidos de desejo sexual, mas que o manifestam de formas diferentes. Acho que talvez o desejo e o sexo em si não sejam coisas necessariamente ligadas. Eu acredito que só o fato de alguém valorizar a natureza de sua própria sexualidade é algo bonito — afirma, sem explicar o que é esta valorização.

No romance, a repetição monótona dos dias de Keiko é chacoalhada somente quando um novo colega, o malcriado Shiraha, vai trabalhar na loja, mudando-se em seguida para o apartamento da protagonista. Tão desajustado quanto ela, mas por motivos opostos, ele a faz contemplar a possibilidade de uma transformação radical. Em ambos os casos, tratam-se de personagens com dificuldades para ser parafusos na bem azeitada, porém inflexível, máquina social japonesa.

— A menos que se encaixem em uma espécie de minoria estereotipada que possa ser compreendida pela maioria, as pessoas que não vivem da maneira comum acabam se tornando alvo de ódio e de medo. Sinto que isso é algo muito assustador — diz a autora.

Capa de "Querida Konbini" Foto: Reprodução / Internet
Capa de "Querida Konbini" Foto: Reprodução / Internet

“Querida konbini". Autora: Sayaka Murata. Tradução: Rita Kohl. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 152. Preço: R$ 39,00. Cotação: Bom.