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Silviano Santiago: 'Só no Brasil escritor não pode ser inteligente'

Com novo livro de ensaios e suas memórias no prelo, autor reflete sobre a visão deturpada do papel do crítico-ficcionista no país
Silviano Santiago, em seu apartamento em Ipanena: predestinado à solidão Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Silviano Santiago, em seu apartamento em Ipanena: predestinado à solidão Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo

RIO — Aos 84 anos e com 30 livros publicados, Silviano Santiago admite que “não é um autor de fácil apreensão”. Sua obra é multifacetada, bebe na poesia, ensaio, crítica, tradução, pesquisa e romance. Sua trajetória, das mais expansivas e premiadas. Doutor pela Sorbonne e professor em diversas universidades na Europa e nos Estados Unidos, venceu quase todos os principais prêmios da língua portuguesa e da América Latina: Oceanos , Machado de Assis , Casa das Américas, e nada menos do que três jabutis .

Porém, ao começar a falar sobre seu mais recente lançamento, “Fisiologia da composição” (Cepe), um longo ensaio em que desfaz lugares-comuns da nossa literatura e retoma algumas de suas propostas teóricas mais caras, o catedrático da Universidade Federal Fluminense parece até se desculpar por antecipação.

— A leitura é difícil, né? — pergunta.

É um tanto difícil, sim. Mas é também um passeio livre, sem bússola nem mapa, pelo pensamento de um dos principais ensaístas do país. Escrito durante a pandemia, o livro é basicamente um estudo “anatômico” de duas obras fundamentais — “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e “Memórias do cárcere”, de Graciliano Ramos, que não por acaso trazem uma palavra em comum em seus títulos. A partir deles, Silviano abarca temas recorrentes em sua bibliografia recente: os limites da memória e da composição da linguagem, a liberdade da criação, a escrita através de estimulantes (café, tabaco, sexo, remédios), as relações entre vida e obra e uma leitura enfaticamente anticolonialista de Machado .

O ponto central do livro, porém, é a tematização do corpo e de seus paradoxos (Brás Cubas o autor-defunto; Graciliano o autor sem corpo; as formas literárias como corpo hospedeiro). Ao contrário de outras artes, como a dança ou o teatro, a literatura não é uma expressão de corpo presente, explica Silviano. Ou melhor: só o é através da analogia. “Memórias póstumas” assume a forma do corpo convulsivo de Machado, que transforma sua própria epilepsia em composição literária. “Memórias do cárcere” só existe porque seu autor, fisicamente aniquilado pela prisão, é incapaz de transformar sua experiência em diário.

— Muito desse novo livro me veio da minha experiência na pandemia, um momento propício para discutir a invenção — explica o ensaísta, que no final do mês lançará ainda o primeiro volume de suas memórias, “Menino sem passado”. — Porque é um momento em que a liberdade nos é negada, ao mesmo tempo em que se tem uma liberdade total para inventar a literatura, a vida, o prazer e a política. Não por acaso minhas leituras sobre os livros de Graciliano e Machado são muito politizadas.

Nas últimas obras do autor, as relações entre corpo, memória e invenção estão ligadas ao envelhecimento e a aproximação da morte. É assim em “Machado” (2016), o seu premiado híbrido de ficção e ensaio sobre os últimos anos da vida do Bruxo do Cosme Velho, ou ainda “Mil rosas roubadas” (2014), uma biografia cruzada em que Silviano revê sua história com o produtor musical Ezequiel Neves e exorciza o luto pelo amigo (morto em 2010). Esses retratos de irmãos espirituais levam invariavelmente a um jogo de espelhos, em que ele acaba refletindo sobre sua própria velhice e solidão.

A idade levou Silviano a começar suas memórias, que sairão pela Companhia das Letras em três volumes. Não há, porém, nenhuma tentativa de totalização de vida neste projeto, que ele compara a “um vitral quebrado”. As lembranças vão e voltam, “com flashforwards e flashbacks“, indo da infância em Minas ao Rio atual, passando pela juventude em Paris e os anos de magistério no interior dos EUA. Uma estrutura tão fragmentada quanto os interesses e deslocamentos do autor.

— Eu tenho 84 anos, sabe o que é isso? — diz ele, com uma risadinha de afronta ao tempo. — A velhice é uma época em que estamos entre o confessionário e o consultório médico, em que nos tornamos ao mesmo tempo muito exigentes e muito compreensivos com nós mesmos. Mas é também um momento em que acabamos recorrendo ao que Nietzsche chama de A Grande Saúde. Que não é aquela saúde da juventude, mas uma saúde que você vai inventando para si, tornando-se mais e mais consciente de que tem que tratar bem o seu corpo.

Silviano leva uma vida solitária em seu apartamento em Ipanema, na Zona Sul do Rio, e vem cumprindo uma quarentena rigorosa e intelectualmente produtiva. Só sai dali para ir ao prédio vizinho, onde mantém um segundo apartamento transformado em biblioteca. A solidão não está condicionada à cidade ou ao momento de sua vida. Ele a considera uma “predestinação”, que o acompanha desde os primeiros anos de vida em Formiga (MG), sua cidade natal. O escritor perdeu a mãe aos quatro anos e, desde então, sente-se solto no mundo. Máquina de referências, Silviano explica seu destino com uma alusão ao poema “Le guignon” (em português, “Má sorte”), de Baudelaire, em que o decadentista francês pede a Sísifo a coragem para carregar o peso de seu fardo até o fim.

— A solidão é o meu guignon , uma questão fundamental na minha vida — define o autor. — Desde o início tentei mexer em muitas coisas ao mesmo tempo, quis ser crítico de cinema, andei com o pessoal das artes, da dança e do teatro (ele traduziu peças de Samuel Beckett em 1966). Mas acabei sendo professor, uma profissão que não tinha nada a ver com as coisas que eu fazia e que requisitou que eu tivesse um período muito longo no exterior e extremamente dedicado a uma trajetória muito pessoal. Sempre me fragmentei demais nessa forma como constitui uma formação.

Vencedor do Prêmio Faz Diferença do Globo em 2018 , Silviano é um caso raro — no Brasil — de crítico-ficcionista, cujos impulsos criativos não podem ser separados dos suas epifanias teóricas. Algo comum na literatura de outros países (e em toda à tradição pós-moderna a que o escritor pertence), mas que por aqui ainda pode levar a alguns desentendimentos e distorções. Silviano não gosta, por exemplo, de ser chamado de “crítico”, um termo que acaba excluindo o aspecto ficcional de sua obra.

— Só no Brasil escritor não pode ser inteligente. A invenção é um produto crítico, um produto reflexivo. Mas por aqui se acha que a pessoa escreve porque é inspirada — argumenta Silviano.

O autor também se diz “realista” sobre a percepção que os leitores têm de seu trabalho.

— Eu não sei se as pessoas têm coragem de ler mais de dois livros meus. Ficaria satisfeito se lessem. Andy Warhol disse uma coisa muito certa sobre todo mundo ter os seus 15 minutos de fama. Eu certamente tive os meus.

“Fisiologia da composição”. Autor: Silviano Santiago. Editora: Cepe. Páginas: 285. Preço: R$ 50,00 e R$ 18,00 (ebook)