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Tesouro do modernismo português, 'Húmus' é reeditado após quase 100 anos

Admirada por José Saramago, obra de Raul Brandão não era publicada no Brasil desde 1921
Retrato de Raul Brandão e sua esposa, D. Angelina Brandão, por Columbano Bordalo Pinheiro, em 1928. Foto: Domínio público
Retrato de Raul Brandão e sua esposa, D. Angelina Brandão, por Columbano Bordalo Pinheiro, em 1928. Foto: Domínio público

RIO — O modernismo português deu voz a grandes escritores, como Fernando Pessoa e Mario de Sá-Carneiro, que sempre tiveram seus livros em catálogo no Brasil. Mas existem outros nomes importantes para o movimento que há anos esperam por uma redescoberta editorial por aqui. É o caso de Raul Brandão (1867-1930). Em 2016, ele teve o livro póstumo “O pobre de pedir”, de 1931, lançado pela primeira vez em solo nacional (pela Chão de Feira). No fim de 2017, foi a vez de sua obra mais emblemática, “Húmus”, retornar às nossas livrarias. A espera tem um peso quase centenário. Lançado em Lisboa em 1917, o livro, que mistura poesia, prosa e experimentações de linguagem, teve sua última edição aqui em 1921.

Ambientado no modorrento cenário de uma vila, “Húmus” relata o cotidiano desse lugar assombrado pela rotina, a religião e a morte a partir de um narrador onipresente. A obra tem diversas características que o inserem em um típico projeto modernista, a começar pela linguagem, como aponta o professor da Universidade Federal de São Paulo Leonardo Gandolfi, especializado em literatura portuguesa, que assina o posfácio desta edição.

Escrito em formato de diário descontínuo, no tipo de fragmentação cara aos projetos modernistas — como no “Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa — a chamada prosa poética é, de acordo com Gandolfi, um dos grandes definidores da obra:

— O escritor Paul Valéry dizia que a prosa se assemelhava a andar, e a poesia, a dançar. Na verdade, a melhor prosa do século XX põe em xeque qualquer dicotomia entre poesia e prosa. “Húmus” é importante porque faz essa fusão de maneira mais forte na literatura portuguesa. Ele também redimensiona a ideia de tempo e espaço, já que brinca com a necessidade de início, meio e fim. Tudo isso se junta às experimentações com a voz narrativa. Basicamente, o livro implode a narrativa tradicional.

Apesar de a obra ter sido lançada em 1917, outras duas versões distintas da primeira se seguiram à original, sendo a última de 1926. É essa que chega agora ao país — ainda assim porque, em 2016, a editora Graziella Beting descobriu por acaso uma edição de “Húmus” em inglês, numa viagem aos EUA. Foi então que ela percebeu a necessidade de reeditá-lo por aqui novamente, com atualização gramatical, mas mantendo supostas incongruências encontradas na última versão do romance, como a não linearidade nas datas do diário. A composição gráfica também retoma a atmosfera do livro, com manchas de nanquim a cada capítulo.

— Quando li o livro pela primeira vez, me perguntei como não tínhamos isso no Brasil. Raul Brandão é um escritor muito lido e valorizado por outros escritores, como José Saramago. Foi importante pra uma renovação da literatura portuguesa e não tê-lo aqui é inadmissível — disse Graziella.

Todo esse tempo sem “Húmus” no Brasil não surpreende Gandolfi.

— Sobre o sumiço de “Húmus” por aqui podemos apontar alguns aspectos — observa ele. — Existe no século XX um certo apagamento, no Brasil, da literatura portuguesa. Isso tem muito a ver com nosso modernismo se afirmando, a busca por interlocuções locais e pela valorização de uma certa identidade brasileira nas artes. E a imagem do país também se manchou com a ditadura, e em algum momento o interesse das editoras por alguns nomes simplesmente desapareceu.

* Estagiário, sob supervisão de Nelson  Vasconcelos