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Tradutor e professor de latim, Guilherme Gontijo Flores dá originalidade a velhos poemas

Escritor lança no Brasil o livro "carvão :: capim", editado no ano passado em Portugal
Guilherme Gontijo Flores: poesias são inspirados no período em que viveu em Morretes, no litoral paranaense Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Guilherme Gontijo Flores: poesias são inspirados no período em que viveu em Morretes, no litoral paranaense Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO — Se fosse verter para o português os versos de “Leaves of grass”, de Walt Whitman, o tradutor-poeta Guilherme Gontijo Flores apostaria em “Folhas de capim”, em vez de uma solução consagrada como “Folhas da relva”. Quando morava numa chácara em Morretes, uma cidadezinha no litoral paranaense, ele gostava de observar o capim que virava carvão vegetal e adubava o capim que continuava a crescer. Lá, começaram a nascer uns poemas que contrapunham a vida e a morte, versos nos quais a grama crescia em fúria, o musgo cobria os muros e restava apenas “o carvão dos corpos”.

Depois de completar a publicação da tetralogia poética “Todos os nomes que talvez tivéssemos”, Gontijo reuniu os poemas morretenses no livro “carvão :: capim”, recém-lançado no Brasil pela Editora 34, mas editado no ano passado em Portugal pela Artefacto.

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Os versos de "carvão :: capim" opõem a vida e a morte com imagens de soldados desesperados, desastres ambientais, rouxinóis, vagalumes e jabutis — sem esquecer da política. Gontijo dedica poemas a Dinalva Oliveira, guerrilheira assassinada pela ditadura militar brasileira, e Roque Dalton, poeta salvadorenho morto por seus companheiros do Ejército Revolucionario del Pueblo.

Gontijo gosta de brincar com as formas. Compõe versos livres, tercetos e palíndromos. O poema “The multitudinous seas incarnadine” que imagina um beijo no meio das balas de borracha e do gás lacrimogêneo de junho de 2013, forma o desenho de um quadrado, como se fosse contido por um cordão de isolamento policial.

— Como poeta contemporâneo e estudioso dos clássicos greco-latinos, ocupo um lugar confortável de herdeiro tanto das formas arcaicas como das vanguardas. Tenho a tradição inteira ao meu dispor — disse Gontijo ao GLOBO. — Eu me interesso pelas formas poéticas da Antiguidade clássica porque elas são tão diferentes, já foram tão esquecidas, que podem voltar a ser novas.

Capa de 'carvão :: capim', de Guilherme Gontijo Flores Foto: Divulgação
Capa de 'carvão :: capim', de Guilherme Gontijo Flores Foto: Divulgação

Professor de latim na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Gontijo é tradutor dos clássicos gregos e romanos. Traduziu os “Fragmentos completos” (Editora 34), de Safo, a poeta da Ilha de Lesbos, e “Por que calar nossos amores?” (Autêntica), uma coletânea de poesia homoerótica romana, em parceria com outros três tradutores. A poesia antiga era, com frequência, oral e cantada. Antes de traduzir os versos, Gontijo aprende a cantá-los. As sílabas longas e breves do grego antigo ajudam-no a recuperar o padrão rítmico dos poemas. Daí, surge uma métrica, que Gontijo preenche com a tradução, distribuindo bem as sílabas tônicas para repetir, em português, a cadência grega. Assim, ele consegue soluções originais para velhos poemas. A tradução mais corrente dos mais famosos versos de Safo é “Parece-me ser igual aos deuses/ aquele homem”. A tradução de Gontijo contém uma piscadela marota para Caetano Veloso: “Num deslumbre ofusca-me igual aos deuses/ esse cara”.

Gontijo leva suas traduções rítmicas grego-latinas para o palco. Junto com colegas da UFPR, ele montou a banda Pecora Loca, que interpreta poemas clássicos — em grego e português — acompanhada de instrumentos diversos, como violão, cavaquinho e, sim, lira. Além do repertório clássico, a Pecora Loca também toca versões em português de canções como “Total eclipse of the heart”, de Bonnie Tyler, e “Bille Jean”, de Michael Jackson, que Gontijo traduziu por “Iracema”.

— A gente sacaneia e diz que só toca clássicos (risos). Quem vai dizer que Bonnie Tyler e Michael Jackson não são clássicos? — brinca. — Somos a banda mais punk da Antiguidade.

Gontijo conhece grego, latim, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão e anda estudando egípcio antigo (escrito em hieróglifos) para traduzir poemas de amor.

— Há uma continuidade real entre o meu trabalho de tradutor e de poeta — diz. — Estou decidido a publicar os poemas amorosos do Egito Antigo como se fosse um livro meu, para mostrar que as escolhas e o modo de traduzir dizem respeito aos modos como escrevo poesia.