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Única mulher a concorrer na categoria tradução do Prêmio Jabuti, Livia Deorsola decifra linguagem secreta de autor mexicano

Tradutora encarou neologismos e arcaísmos em 'De duas, uma', de Daniel Sada
Livia Deorsola, tradutora indicada ao Premio Jabuti Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Livia Deorsola, tradutora indicada ao Premio Jabuti Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO - Na infância, o espanhol era a língua dos segredos. Quando o avô italiano e a avó e mãe argentinas queriam conversar sobre assuntos que as crianças não podiam ouvir, apelavam para o idioma de Cervantes. Mas o mistério só fazia atiçar a curiosidade. Dos ouvidos atentos cresceu o gosto por aquela língua tão diferente e familiar. Foram assim os primeiros contatos de Livia Deorsola, paulista de Ribeirão Preto, com o espanhol.

Hoje, Livia desvenda outros segredos, escondidos nas linhas de autores hispano-americanos e em palavras que parecem ser uma coisa, mas são outra. Por resolver os difíceis enigmas do romance “De duas, uma”, do mexicano Daniel Sada, Livia foi indicada ao Prêmio Jabuti de Tradução. Os vencedores serão anunciados nesta quinta-feira (8) .

– Fiquei feliz e espantada com a indicação – contou Livia ao GLOBO. – Uma amiga destacou que eu era a única mulher indicada este ano, não tinha me atentado. É uma pena não ter mais mulheres. O mundo editorial, aliás, é extremamente feminino, do início ao fim da produção de livros.

Desde 2000, o Jabuti premiou 57 tradutores – mas apenas 10 mulheres. Livia compete com 14 homens, como os premiados Guilherme Gontijo Flores, Maurício Santana Dias e Trajano Vieira. Alguns de seus concorrentes traduzem de línguas exóticas e até mortas, como islandês, grego, latim e acádio, que era falada na antiga Mesopotâmia.Nos últimos anos, o Jabuti preferiu premiar tradutores que se aventuraram por idiomas esdrúxulos ou novas versões de clássicos, como “Ulysses” e “Guerra e paz”.

A língua espanhola foi premiada pela última vez em 2004, por uma tradução de “Dom Quixote” assinada por Sérgio Molina. Em 2010, porém, houve uma categoria especial para traduções espanhol-português, mas apenas tradutores homens venceram.

Traduzir o idioma de nossos vizinhos é, às vezes, considerado mais fácil – o que não é verdade, em especial quando se trata de autores como Sada. Nascido em 1953, em Mexicali, no Norte do México, e falecido em 2011, Sada ajudou a renovar o espanhol como língua literária. Admirava os poetas barrocos espanhóis (Lope, Quevedo, Góngora) e Guimarães Rosa. Arrancou elogios de pesos pesados da literatura latino-americana como Roberto Bolaño e Carlos Fuentes.

Expressões desconhecidas

“De duas, uma” é um autêntico dramalhão mexicano que também faz rir. As protagonistas, as gêmeas solteironas Constitución e Gloria Gamal que disputam o mesmo “galã”, são apresentadas com riquezas de detalhes e ironia.

Sada embaralha neologismos, arcaísmos e expressões idiomáticas próprias do deserto de Coahuila, que ele conhecia tão bem, numa prosa sinuosa que desespera os tradutores mais valentes. Livia planejava traduzir as pouco mais de 100 páginas de “De duas, uma” em apenas um mês. Levou três. Para decifrar a linguagem secreta de Sada, recorreu a uma dezena de mexicanos, inclusive à viúva do autor, Adriana Jiménez.

– Fiz uma lista de termos e expressões cujo significado não consegui descobrir na internet e em dicionários especializados – contou. – Entrei em pânico quando vi que nem mexicanos conheciam algumas daquelas expressões. Por fim, acionei Adriana, que me dava explicações mais longas e seguras.

Livia se enroscou com expressões como “tanteo nomás”, que ela pensou que significasse algo como “tentativa” ou “tateante”, mas descobriu que, ali, queria dizer “cálculo”. “Jaloncito de la voz”, depois de muitas voltas, virou “jeitinho da voz”. E a expressão “siempre a medio tren” foi traduzida por “sempre ponderadas”, uma solução que não a agradou de todo.

Para Livia, a mistura de “literatura barroca com tragicomédia” é o traço mais marcante de Sada – e o mais difícil de traduzir.

– Não existe equivalência em tradução. O que existe é correspondência – diz Livia. – Uma tradução nunca mimetiza com perfeição a língua original, será sempre uma tentativa de interpretação. Aí está a graça de traduzir.

"De duas, uma"
Daniel Sada
Tradução: Livia Deorsola
Todavia
104 páginas
R$ 39,90