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Vereadora e poeta da 'diáspora sertaneja': conheça Cida Pedrosa, a grande vencedora do Jabuti 2020

Autora recebeu prêmio de Livro do Ano por 'Solo para vialejo', longo poema sobre o Sertão Pernambucano
A poeta pernambucana Cida Pedrosa Foto: Rick Rodrigs / Divulgação
A poeta pernambucana Cida Pedrosa Foto: Rick Rodrigs / Divulgação

RIO —  O ano está difícil para todo mundo, mas, pelo menos para a poeta Cida Pedrosa, ele acaba de ficar um pouco melhor. Após ser eleita vereadora em Recife nas últimas eleições municipais, a pernambucana foi escolhida, anteontem à noite, a grande vencedora Prêmio Jabuti . A principal premiação literária do país elegeu o seu “Solo para vialejo” como o Livro do Ano de sua edição 2020. Ela receberá R$ 100 mil.

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A escolha não surge exatamente uma surpresa, já que, nos últimos anos, o Jabuti vem se notabilizando por recompensar obras fora do eixo Rio-SP e lançadas por editoras independentes. Mas é sem dúvida uma oportunidade para apresentar nacionalmente uma autora ainda pouco conhecida fora de Pernambuco.

— Estou me sentindo privilegiadas de poder ter alegrias tão grandes em um ano tão doloroso — diz a poeta, em entrevista por telefone.

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Recife é a “casa” de Cida, mas o Sertão está com ela onde ela for. Esse, aliás, é o tema maior de “Solo para vialejo”, um longo poema sobre o folclore e a musicalidade de sua Bodocó natal, no Sertão pernambucano. Os versos dialogam com as toadas de sua infâncias, “a música das missas domingueiras” tocada em uma “serafina de dois pedais” pela parteira da cidade. Revisita os cheiros, os sons e as cores locais, ao mesmo tempo em que cria intertextos com canções como “Ana Rosa”, de Humberto Teixeira e “I’m your hoochie coochie man”, de Willie Dixon, e com frases de Antonio Conselheiros e trechos da carta de Pero Vaz de Caminha.

A poeta, que é filha de agricultores e se mudou para Recife aos 14 anos, vê nesse regresso uma espécie de “migração ao contrário”, uma verdadeira diáspora sertaneja.

— Se meu corpo estiver em Paris, o Sertão estará junto — explica a poeta, que domina as métricas do cordel. — Os índios se afastavam do mar e fugiam para o Sertão à medida que os portugueses iam chegando ao Brasil. Os negros escravizados que conseguiam escapar também se dirigiam para o Sertão. Eles deixaram uma memória histórica que também está comigo. Por isso falo em diáspora. Trago minhas memórias pessoais, mas também uma memória coletiva. É como um blues.

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Além do prêmio e dos cerca de 3600 votos recebidos como vereadora pelo PCdoB, Cida ainda lançou um livro novo este ano ( “Solo para vialejo” é de 2019). Autopublicado em formato digital na Amazon, “Estesia” foi composto ao longo da pandemia. Durante a quarentena, a autora aproveitou as saídas com o cachorro para fotografar a cidade vazia. Enviava as fotos para si mesma (em um grupo de WhatsApp só para si chamado “euzinha”) e escrevia os poemas a partir das imagens.

A apresentadora Maju Coutinho conversa com Cida Pedrosa após o anúncio do prêmio Foto: Eduardo_Lopes / Divulgação
A apresentadora Maju Coutinho conversa com Cida Pedrosa após o anúncio do prêmio Foto: Eduardo_Lopes / Divulgação

Cida é autora de 10 livros, seis deles autopublicados. Duas de suas obras mais recentes “Claranã” (2015) e “As filhas de Lilith” (2009) chegaram à final do Prêmio Oceanos de Literatura. Nos anos 1980, Cida militou no Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco. Colocava seus livros debaixo do braço e ia vendê-los em bares e filas de teatro. Esse gosto pela independência certamente foi bem visto pelos jurados do Jabuti, que em 2018 chegou a consagrar, pela primeira vez em sua história, um livro publicado sem editora (“A cidade”, do cearense Mailson Furtado, ele também, por sinal, sertanejo).

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“Solo para vialejo” não foi o único premiado na cerimônia de anteontem, que divulgou os vencedores de outras 20 categorias.E o escolhido na categoria Melhor Romance Literário, “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior , também tem o Sertão em seu DNA. O romance descreve o trabalho análogo à escravidão em uma fazenda no interior da Bahia. A 62 º edição do prêmio consagrou ainda o escritor Raphael Montes, na categoria Romance de Entretenimento, por "Uma mulher no escuro" (Companhia das Letras).

Os outros premiados da noite foram Carla Bessa, que venceu na categoria Conto por “Urubus” (Confraria do Vento), e Nélida Piñon , na categoria Crônicas por "Uma furtiva lágrima" (Record). Na não ficção, destaque para "Escravidão - Vol. 1" (GloboLivros), de Laurentino Gomes, vencedor em Biografia, Documentário e Reportagem, e “Pequeno manual antirracista” (Cia das Letras), de Djamila Ribeiro, que venceu em Ciências Humanas.