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Virginia Woolf: Lewis Carroll nos mostrou o mundo de ponta-cabeça, como uma criança o vê

Em ensaio de 1939, incluído em nova edição de 'Através do espelho', escritora inglesa analisa obra do criador de Alice
Lewis Carroll Foto: Reprodução
Lewis Carroll Foto: Reprodução

A obra completa de Lewis Carroll foi publicada pela editora Nonesuch Press em um grosso volume de 1293 páginas ¹. De modo que agora não há desculpa — Lewis Carroll precisava existir completo de uma vez por todas. Nós precisamos tentar abarcá-lo como um todo, na íntegra. Mas falhamos — uma vez mais, falhamos. Pensamos ter capturado Lewis Carroll; olhamos novamente e vemos um clérigo de Oxford. Pensamos ter capturado o Reverendo C. L. Dodgson — olhamos novamente e vemos um elfo dos contos de fada. O livro se quebra ao meio em nossas mãos. Para cimentá-lo, recorremos à Vida.

Mas o Reverendo C. L. Dodgson não teve vida. Passou pelo mundo tão suavemente que não deixou rastros impressos. Mesclou-se tão passivamente em Oxford que é invisível. Acatou todas as convenções; foi pudico, perfunctório, pio e jocoso. Se existiu uma essência dos professores de Oxford do século XIX, ele foi essa essência. Era tão bom que suas irmãs o idolatravam; tão puro que seu sobrinho não tem nada a dizer contra ele. Simplesmente é possível, ele sugere, que “uma sombra de desapontamento paire sobre a vida de Lewis Carroll”. O senhor Dodgson nega imediatamente essa sombra. “Minha vida”, ele diz, “foi isenta de provações e privações”. Porém essa água-viva sem um pingo de tinta continha dentro de si um cristal de perfeita dureza. Que continha infância. O que é algo muito estranho, pois a infância normalmente se apaga lentamente.

Fagulhas de infância persistem quando o menino ou a menina são homem e mulher adultos. A infância voltas às vezes de dia, mas é mais comum que volte à noite. Isso, porém, não era assim com Lewis Carroll. Por algum motivo, não sabemos qual, sua infância foi interrompida abruptamente. Ele a alojava inteira como um todo dentro de si. Não podia deixá-la se dispersar. E assim, conforme ele foi envelhecendo, esse impedimento no centro de seu ser, esse bloco duro de pura infância, privou o homem maduro de alimento. Ele se esgueirou através do mundo adulto feito uma sombra, solidificada apenas na praia de Eastbourne, com garotinhas cujos vestidos ele prendia com alfinetes de segurança. Mas como a infância permaneceu dentro dele inteiriça, ele foi capaz de fazer o que ninguém pôde fazer — ele foi capaz de voltar para aquele mundo; foi capaz de recriá-lo, de modo que nós também voltássemos a ser crianças.

No intuito de nos fazer ser criança de novo, ele primeiro nos faz dormir. “Caindo, caindo, caindo, será que essa queda nunca terá fim?” Caindo, caindo, caímos naquele mundo aterrorizante, loucamente inconsequente, e no entanto perfeitamente lógico, onde o tempo corre, depois para; onde o espaço estica, depois se contrai. É o mundo do sono; é também o mundo dos sonhos. Sem nenhum esforço consciente, os sonhos vêm; o coelho branco, a morsa e o carpinteiro, um atrás do outro, virando e se transformando uns nos outros, eles vêm ricocheteantes e saltitantes, passando através da nossa mente. É por esse motivo que as duas Alices não são livros para crianças; mas são os únicos livros em que nós nos tornamos crianças. O presidente Wilson, a rainha Victoria, o articulista do jornal “The Times”, o falecido Lorde Salisbury — não importa quão velho, quão importante, ou quão insignificante você seja, você se torna outra vez uma criança. Virar criança é ser muito literal; é achar tudo tão estranho que nada é surpreendente; é ser impiedoso, cruel, e no entanto tão passional que qualquer desdém, uma sombra, veste o mundo inteiro de luto. É ser Alice no País das Maravilhas.

É também ser Alice através do espelho. É ver o mundo de ponta-cabeça. Muitos dos grandes satiristas e moralistas nos mostraram o mundo de cabeça para baixo, e nos fizeram vê-lo, como as pessoas adultas o veem, como selvageria. Apenas Lewis Carroll nos mostrou o mundo de ponta-cabeça como uma criança o vê, e nos fez dar risada como uma criança dá risada, irresponsavelmente. Nos bosques do puro nonsense, rodopiamos às gargalhadas, rindo: “Procuraram com dedais — com cuidado, perseguiram,/ Caçaram com fé e facão —/ Despertaram sua cobiça com ações da ferrovia —/ Seduziram com sorrisos e sabão.” ²

E então acordamos. Nenhuma das transições de Alice no País das Maravilhas é tão estranha quanto acordar. Pois despertamos para descobrir — será que é o Reverendo C. L. Dodgson? Será Lewis Carroll? Ou ambos combinados? Esse conglomerado que pretendia produzir uma edição bowdlerizada de Shakespeare ³ para o uso das empregadas domésticas britânicas; implora que elas pensem na morte antes de irem ao teatro; e sempre, sempre se dar conta de que “o verdadeiro objetivo da vida é o desenvolvimento da personagem...” 4 Será, então, que, mesmo em 1293 páginas, existe isso que chamam de “completude”?

1) Este texto foi publicado na revista londrina “News Statement and Nation” em 9 de dezembro de 1939, por ocasião da publicação da primeira obra completa de Lewis Carroll, e integra a edição de “Através do espelho”, com ilustrações de Rosângela Rennó, recém-lançada pela Editora Cosac Naify.

2) Citação dos dois primeiros versos do poema “The Hunting of the Snark“ (“Caça ao Esnarque”, de 1876. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza e Eduardo Verderame).

3) O termo “Bowdlereised” no original, aqui traduzido como “bowdlerizada”, faz referência a Thomas Bowdler (1754-1825), inglês que publicou a obra completa de William Shakespeare editando o original, de modo a aproximar o texto do que considerava apropriado para mulheres do século XIX. O termo faz referência àquilo que foi modificado do original por motivo de censura.

4) No original em inglês: character, que tanto significa “personagem” quanto “caráter”, permitindo um trocadilho. (N.T.)