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'X-Men: Grand Design' recria complexidade dos heróis e traça 40 anos de evolução

Livro de Ed Piskor faz uma cronologia da história mutante e tenta imitar o material dos gibizões do passado
'X-Men: Grand design' se detém em pontos-chave dos 40 anos de história mutante, todos bem conectados Foto: Reprodução
'X-Men: Grand design' se detém em pontos-chave dos 40 anos de história mutante, todos bem conectados Foto: Reprodução

RIO — Começou no Twitter. Ed Piskor postou um desenho dos X-Men e escreveu: “A Marvel tinha que deixar eu fazer um gibi dos X-Men do meu jeito.”

Diz o autor que um editor da Marvel entrou em contato uma hora depois e pediu para conversar. Tenha sido o tuíte de pirraça ou de arrogância, a proposta foi petulante: Piskor, 37 anos, que já havia destrinchado o surgimento do hip hop numa celebrada HQ, queria fazer uma série explicando as seis décadas de história dos X-Men. A Marvel pagou para ver. Nascia “Grand design”.

Quem conhece a trajetória dos mutantes dos quadrinhos — ou mesmo dos dez filmes — há de concordar que é mesmo um “grandioso desígnio”. Difícil achar narrativa mais complicada, mais enredada, mais rocambolesca do que a contada no somatório da história que começou lá em 1963.

É o que os fãs chamam de cronologia ou de continuidade. Uma história deu sequência à outra, e à outra, e à outra — com lógica e coerência, em teoria — há quase 60 anos. São mais de 5 mil gibis que — em teoria, de novo — devem ter consistência entre si. E um pode referenciar ou complementar o outro, o que acontece com frequência.

Vale lembrar que os X-Men surgiram no mesmo Universo Marvel que o roteirista Stan Lee vinha povoando há dois anos com super-heróis como Quarteto Fantástico, Hulk, Homem-Aranha, Thor e Homem de Ferro. A diferença dos X-men para estes é que, em vez de adquirirem poderes via ciência ou mágica, simplesmente nasciam com genes que os tornavam especiais.

Piskor se concentrou na primeira metade desses 60 anos de HQs. É sua era de ouro pessoal: das origens dos X-Men com Lee e Jack Kirby às quase duas décadas que a série passou sob a batuta do escritor Chris Claremont.

De fato, é a fase mais citada e mais republicada dos mutantes. Para quem, como Piskor, tem entre 30 e 40 anos — a faixa etária média de quem ainda lê X-Men — e conheceu os mutantes na infância e pré-adolescência, também é a era de ouro.

O autor, é claro, não surgiu do nada com essa petulância. Tinha acabado de concluir o já citado “Hip Hop Genealogia”, uma pesquisa minuciosa sobre a origem do gênero musical nos Estados Unidos (publicada no Brasil pela editora Veneta). Contou essa história em gibizões da altura de um antebraço, o formato “Treasury” que a Marvel usava para lançamentos especiais nos anos 1970. Com papel fake-amarelado e cores com retícula estourada, deu tons de nostalgia e ares de super-herói a artistas como DJ Kool Herc, Grandmaster Flash e Beastie Boys.

Em “Grand design”, formato e estilo se repetem. Quer passar a ideia de que você está lendo um gibizão dos X-Men em papel jornal e impressão ruim dos anos 1970. Mas fica só na ideia. O papel é bom, a impressão é excelente — e o preço não é de meros trocados.

Bonecos articulados

Se Piskor fizesse páginas de 16 quadros e dedicasse cada um a uma HQ dos X-Men, ainda faltaria espaço em “Grand design”. Mesmo assim, sua narrativa não é corrida. Ele se detém em pontos-chave da grande história mutante, todos bem conectados.

Partimos das origens em paralelo dos futuros Professor X e Magneto. O primeiro tem que lidar com a benção e a tragédia da telepatia desde a infância numa família rica. O segundo cresce na Alemanha nazista e acaba num campo de concentração antes de descobrir poderes magnéticos.

Os dois são mutantes, seres que nascem com genética diferenciada e desenvolvem poderes. As origens dicotômicas levarão um a ser fundador dos X-Men, equipe cuja meta é acabar com o preconceito social contra os mutantes, e o outro a ser um vilão que defende a extinção do Homo sapiens para dar lugar à evolução mutante.

As primeiras aventuras dos X-Men, dos anos 1960, são recontadas junto a complementos que apareceram décadas depois — como a trajetória pré-equipe do time inicial, composto por Ciclope, Homem de Gelo, Anjo, Fera e Garota Marvel. Piskor quer se mostrar um estudioso dedicado, então cruza o material clássico com esses penduricalhos.

As inconsistências mais engraçadas, como o excesso de alienígenas nas tramas, ou as mais anacrônicas, como a de Professor X e Magneto terem participado da Segunda Guerra e ainda não serem idosos, entram sem questionamento.

Nas HQs atuais dos X-Men, preza-se mais pelo realismo (apesar de ter gente voando, soltando raios etc.) e a consistência entre as tramas tende a ser mais vigiada. Elementos como os anacronismos vez por outra são recauchutados para justificar que os personagens sigam entre seus 30 e 50 anos de idade na ficção.

Mas Piskor vai por outro rumo. Para ele, aceitar as doses de ridículo e de inconsistente faz parte da suspensão de descrença.

Aliás, é como se o autor fosse uma criança com os X-Men na mão, como bonequinhos articulados. Seu barato, porém, não é inventar histórias na brincadeira. Para Piskor, o barato é saber recontar a complexa continuidade que já está na sua coleção de gibis.

O primeiro volume de “Grand design” se encerra às vésperas da formação dos Novos X-Men — que incluía Wolverine, hoje o mutante mais famoso. Com esta reformulação, realizada em 1975, a equipe chegou ao sucesso de público que até então não conhecia.

Os “desígnios” de Piskor fecham em três volumes, que já saíram lá fora. Ele também inspirou outro autor, Tom Scioli, a fazer um “Grand design” do Quarteto Fantástico. Os dois são fãs que ganharam o direito de brincar com seus bonequinhos preferidos na frente dos outros fãs. Mas só podem brincar se mostrarem-se dignos conhecedores da continuidade. Dependendo do quanto você mesmo conhecer, vai curtir ou discutir com os X-Men a la Piskor.

* Érico Assis é tradutor e crítico de quadrinhos

“X-Men: Grand design Vol. 1”

Autor: Ed Piskor

Editora: Panini

Tradução: Lívia Koeppl Páginas: 120 Preço: R$ 99

Cotação: Muito bom