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Zuenir Ventura completa 90 anos em junho com livro novo e depoimento ao Arquivo Geral

Jornalista e escritor lança edição ampliada de ‘Minhas histórias dos outros’ e grava participação em projeto sobre o Rio
Zuenir Ventura completa 90 anos dia 1 junho Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Zuenir Ventura completa 90 anos dia 1 junho Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO —  No próximo 1º de junho, Zuenir Ventura chega aos 90 anos em paz com a sua idade. Ou, como ele mesmo explica:

— Feliz, sem doença, e cantarolando “Gracias a la vida”, de Mercedes Sosa.

Mas há algo que incomoda o jornalista, escritor, imortal da Academia Brasileira de Letras e colunista do GLOBO. É a insistência da sociedade contemporânea em ver a velhice como “um peso morto”. Tanto que ele mesmo não para. Está lançando uma reedição revista e ampliada de seu “Minhas histórias dos outros”, de 2005, em que relembra alguns personagens com quem cruzou ao longo da carreira. E, nesta terça-feira, 18, abre a série “Depoimentos cariocas”, projeto do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro em que personalidades contam sua relação com a capital fluminense. O relato de Zuenir, que será gravado à distância em função da pandemia, ficará disponível em formato podcast e em vídeo no perfil da instituição no YouTube.

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— Economistas e tecnocratas acham que depois de velha a pessoa não serve para mais nada — diz o escritor, fazendo uma alusão a uma polêmica declaração de Paulo Guedes, em que o ministro da economia criticou o aumento da expectativa de vida: “Todo mundo quer viver 100, 120, 130”. — Mas aposto que nenhum desses economistas é capaz de fazer como o Verdi, que compôs o seu “Othello” aos 73 anos. Ou como o Chaplin, que aos 88 ainda fazia filmes e filhos. Falar mal da velhice é uma estupidez, porque a alternativa é não chegar nela.

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Para Zuenir, que em 2015 escreveu um musical sobre a velhice com Luis Fernando Verissimo e Ziraldo, fala-se muito da primavera da vida, mas não o suficiente sobre o seu ocaso.

— Há beleza no pôr do sol — pontua. — Mas claro que também depende muito da vista que temos.

Às vezes, essa vista pode dar no espelho retrovisor. Tanto o depoimento no Arquivo Geral quanto a reedição do “Minhas histórias dos outros” são iniciativas memorialísticas, importantes registros do passado em um “país esclerosado”, como define Zuenir.

— Preservar a memória do Rio é guardar o melhor da história brasileira, sua cultura, criatividade e cosmopolitismo — diz a historiadora Rosa Maria Araujo, presidente do Arquivo Geral. — Zuenir Ventura integra com brilho essa história. Sua função de jornalista, seus livros e sua arte em conversar encantam todos os leitores e os que, como eu, têm o privilégio de conviver com ele.

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Já “Minhas histórias dos outros” é o que se costuma chamar de alterbiografia, em que o autor escreve a sua vida a partir da vida das outras pessoas. Nessas histórias cruzadas, temos um desfile de nomes como Glauber Rocha, Nelson Rodrigues, Betinho, Carlos Drummond de Andrade... A maior novidade em relação à edição original, lançada há mais de 15 anos, está no final sombrio, agora mais otimista.

É o capítulo sobre Genésio Ferreira da Silva, testemunha fundamental na condenação dos assassinos de Chico Mendes. Ele era apenas um garoto de 13 anos trabalhando em uma fazenda acreana quando presenciou indiretamente os seus próprios patrões planejando matar o seringueiro. Zuenir, que tinha viajado ao estado para cobrir a morte de Mendes, decidiu levar o adolescente para a própria casa, no Rio, para protegê-lo de uma provável queima de arquivo.

Esconder Silva e mantê-lo sob sua tutela até os 18 anos foi a decisão mais difícil já tomada pelo jornalista em seus 70 anos de carreira. Não apenas ele interferiu na notícia, violando um de seus códigos éticos, como ainda trouxe a apuração para dentro de casa. A convivência foi difícil, com o jovem sofrendo com o alcoolismo e o impulso de voltar para a sua terra natal, mesmo que isso significasse uma morte certa.

Se as edições anteriores de “Minhas histórias dos outros” terminava com um Silva já emancipado, lutando contra o vício e levando uma vida de dificuldades financeiras Brasil afora, essa última traz duas atualizações positivas. Em 2015, a testemunha-chave escreveu um livro, “Pássaro sem rumo”. Cinco anos depois, ligou para Zuenir para informar: estava noivo e continuava sem beber. “Genésio resiste”, conclui o autor.

— É o meu personagem mais dramático, o que mais sofri escrevendo... e vivendo — diz Zuenir. — Foi graças ao depoimento dele à Justiça que os assassinos de Chico Mendes acabaram sendo condenados. Ele era de uma coragem incrível. Mas tinha problemas com a bebida, como ele mesmo já disse publicamente várias vezes. Eu me sentia frustrado porque tinha feito tudo que eu ensinava a não fazer no jornalismo. Mas era uma situação limite: ou evitava a sua morte ou eu noticiaria a sua morte. Acho que faria de novo o que fiz.

Se agora há otimismo em relação a Genésio, o mesmo não se pode dizer sobre o momento atual da Amazônia, lamenta Zuenir. Aliás, a situação geral do país impressiona até mesmo quem, como o jornalista, já viu de tudo.

— Estamos vivendo um momento muito difícil — diz. — Olha que a primeira crise que eu vi foi a morte do Getúlio. Depois disso, vi renúncia de presidente, golpe em cima de presidente. Não quero ser nostálgico, mas acho que, na verdade, nunca vivemos algo como isso. Há um acúmulo de crises: é crise ambiental, crise sanitária, é crise ética... Fora o cinismo. Nem no tempo da ditadura vi esse deboche pela vida.