Cultura

Lulu Santos relança 'A cura', composta na epidemia da Aids: 'Os paralelos são evidentes'

Canção ganhou novo fôlego, e novas interpretações, com a pandemia de Covid-19, principalmente após regravação de Vitor Kley
Vitor Kley e Lulu Santos no estúdio para gravação de 'A cura' Foto: Divulgação
Vitor Kley e Lulu Santos no estúdio para gravação de 'A cura' Foto: Divulgação

Quando Lulu Santos lançou “A cura”, em 1988, o motivo era a epidemia da Aids, e versos como “Enquanto isso, não nos custa insistir/ Na questão do desejo, não deixar se extinguir” miravam em como aquela doença desconhecida e mortal, pejorativamente chamada de “câncer gay”, botava em risco o toque, a libido. Mais de 30 anos depois, a música volta com força como um dos hinos de uma pandemia também pouco conhecida pela ciência e que limita contatos físicos — íntimos, fraternais, familiares.

A esperança pela cura se avizinha com a vacina, e Lulu reacende seu hit de tom otimista com a ajuda da juventude de Vitor Kley, um dos expoentes do pop de violão contemporâneo, o fofolk, em nova versão lançada nesta quarta-feira.

— Os paralelos entre os dois momentos são evidentes. Em 1988, os ativistas gays, a primeira comunidade atingida pela Aids, acusavam justamente o governo de descaso na busca por uma solução clínica — explica Lulu, que completa 68 anos em maio e, enquanto espera sua vez na fila pela vacina, comemora permanecer ileso à Covid-19. — Bom, né? Melhor do que isso, só vacinar na hora certa. Que não é a H, que não existe. H, só bomba.

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'Tempos modernos'

“A cura” é o mais recente — é “óbvio”, julga o autor — caso de canção lançada por Lulu décadas atrás a recuperar o zeitgeist num novo contexto. Recentemente, também, foi o caso de “Tempos modernos”, impulsionado por um remix do grupo de produtores paulistanos Make It Sweat que agita baladas pelo país. Aconteceu ainda com “Como uma onda” e “De repente, Califórnia”, em menor escala. Será que ele esperava esse sucesso duradouro quando escreveu, mais de três décadas atrás?

— Talvez na melhor das hipóteses. Mas, finalmente, eu vejo a vida melhor no futuro, eu sou o último romântico.

“A cura”, particularmente, viu um pico súbito de execuções no último dia 17, quando a Anvisa aprovou o uso emergencial das vacinas de Oxford e da Coronavac no Brasil.

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Foi Lulu quem deu a notícia para Vitor Kley, conta o músico de 26 anos, famoso pelo sucesso “O sol”:

— Ele me mandou uma mensagem dizendo algo como “bora soltar logo essa faixa, a vacina tá aí!”. E concordo demais, estamos passando por tanta coisa: saudade, medo, incerteza... E a ciência está aí, pessoas que estudaram a vida inteira para salvar a humanidade, são nossos heróis. Temos que confiar, celebrar. Que a vacine chegue logo para tentarmos nos curar.

Lulu pensou em adotar versão

Vitor Kley e Lulu Santos no estúdio para gravação de 'A cura' Foto: Divulgação
Vitor Kley e Lulu Santos no estúdio para gravação de 'A cura' Foto: Divulgação

A parceria teve como origem a participação de Vitor Kley em um programa televisivo, quando o gaúcho preparou uma releitura de “A cura” por sugestão da produção. Ele e sua equipe gostaram tanto do resultado que decidiram lançar a versão, e pediram autorização para o time do Lulu. Papo vai, papo vem, e o dois se encontraram (devidamente testados e com todos os cuidados) no estúdio de Lulu, no Rio.

A nova versão da música tem uma cara Vitor Kley avalizada por Lulu Santos. Ela passa uma sonoridade mais crua, delicada, com programação eletrônica discreta e focada no violão do jovem gaúcho. Ousado, Kley trocou o segundo acorde, originalmente em dó maior, para um dó diminuto, o que impacta em como os versos da letra são passados.

— Isso dá uma tristeza, uma pungência, que a versão original não tem. Não só pela interpretação, a voz, a clareza e o uso que ele faz da canção, mas também essa invenção torna essa versão de “A cura” bastante dele. Por um tempo, cheguei a considerar adotar isso para mim — elogia Lulu, que conheceu Kley durante uma transmissão do festival sulista Planeta Atlântida no Multishow. — Ele é muito talentoso, “O sol” é um hit inegável. Bate no ouvido, mesmo sem conhecer, e você entende que é hit. Acompanhei a parceria dele com Samuel (Rosa, em “A tal canção pra lua”) e achei bonita a ponte que ele faz com a geração anterior, ele claramente se alimentou de ouvir com a gente.

— Lulu me deixou livre para fazer a canção do meu jeito. Ia no estúdio, gravava as partes dele e me perguntava se eu estava curtindo, se era como eu imaginava. Foi muito especial — contra-ataca Kley, que cresceu ouvindo Lulu “por tabela” e hoje o considera “o maior hitmaker do país”. — Meu sonho agora é escrever uma música com ele, depois da pandemia. pegar o violão, cantar coisas juntos e ver o que sairia.

Songbook ilustrado

Lulu Santos já tinha ajudado a reaquecer “A cura” no número que abriu o último Prêmio Multishow, em novembro passado, com uma performance ao vivo no topo do Morro da Urca, que rodou o Brasil como um sopro de esperança — “naquela época se sonhava com uma vacina, agora sonha-se com uma vacinação, já é um passo à frente”. Os planos concretos para 2021, conta, são diretamente ligados a rememorar passados:

— Estou desenvolvendo um songbook com o ilustrador Daniel Kondo, chamado “Lulu em traço e verso”. São entre 30 e 40 canções, com ilustrações próprias, letras e cifras de violão, sai em três meses. E, neste exato momento, estou no estúdio, gravando um projeto especial. Meus hits, como “Tempos modernos”, eu já gravei cinco versões diferentes. Mas tenho minha própria playlist de coisas que gosto muito, como “seu aniversário”, e lamento estarem fora do repertório. Vou revisitá-las, com convidados, junto com uma inédita e umas músicas minhas que outros artistas gravaram, mas eu ainda não. O nome do projeto é “Relux”.

Kley, por sua vez, quer explorar a força de sua imagem com o público infantil:

— Não é um Vitor Kley para baixinhos, mas um projeto com um personagem que tem vida própria, o Menino Sol, inspirado no Vitor. A ideia é levar as coisas boas que eu canto, essa positividade, para as crianças. Estamos fazendo as músicas, temos duas canções prontas, os personagens, o enredo. Acredito que saia esse ano ainda.