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Cultura

'Macunaíma' de Bia Lessa descreve ciclo de vida e morte do mito

Inspirada em montagem de Antunes Filho, versão da diretora para o clássico de Mário de Andrade está em cartaz em Belo Horizonte e chega ao Rio em setembro
"Macunaíma", peça dirigida por Bia Lessa Foto: Divulgação/Silvana Marques
"Macunaíma", peça dirigida por Bia Lessa Foto: Divulgação/Silvana Marques

BELO HORIZONTE  - No palco, um mundo desfeito, acabado — ou o vazio absoluto —, representado por toldos plásticos negros, se revolve e cresce, querendo dar à luz uma criatura. Mas, a cada vez que o corpo vai ser expelido, é novamente engolido pelo breu. Ele luta para nascer. Geme, grita. Quando nasce, não é só ele, mas todos os seres que vão habitar a floresta, vividos por 14 músicos e atores que falam tupi, português, alemão, espanhol, inglês, italiano e francês.

Essa visão cenicamente universal, diferente do modo curto e grosso com que Mário de Andrade descreve o nascimento do “herói sem nenhum caráter” (“no fundo do mato virgem nasceu...”), traduz a forma como Bia Lessa quer que a obra icônica da literatura modernista soe em “Macunaíma, uma rapsódia musical” . O novo espetáculo é da Barca dos Corações Partidos , companhia que ganhou destaque com montagens inovadoras como “Suassuna” , e o segundo trabalho seguido de dimensões épicas da diretora. Há dois anos, ela está na estrada com o premiado “Grande sertão: veredas” .

A peça está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, onde estreou após sua première no CCBB de Brasília ter sido cancelada repentinamente sob alegação de que o teatro precisava de uma "reforma emergencial" (troca de cadeiras na plateia), o que gerou rumores de censura. Depois de BH, "Macunaíma" fará escala em São Paulo, a partir do dia 19, onde fica até a estreia no Rio, em 5 de setembro, no Teatro Carlos Gomes.

— Esse ciclo de vida e morte descrito no mito de Macunaíma ao longo de toda a obra é o que estamos vivendo hoje — compara Bia. — Há um movimento de destruição muito profundo e sério. Coisas que podem acabar para sempre, do ponto de vista humano, ambiental, do saber, da preservação dos povos. Não podemos olhar isso como brincadeira. Por outro lado, fico sempre louca e emocionada quando vejo, num paredão de concreto, nascer uma plantinha... É como contemplar uma evidência: a de que, mesmo que mate, nasce de novo. Não acaba. Vem. Brota.

Pura ação

Essa aposta de Bia não é um exercício de Poliana. É preciso morrer junto e, na hora de renascer, não se trata de esperar ser expelido, mas de lutar. Diferentemente de “Grande sertão...”, em que o olhar para o mundo se dá pela reflexão sobre a memória subjetiva, na qual o sertão é o mundo do indivíduo, “Macunaíma” é pura ação, é a reflexão no corpo, nos músculos, no fundo da alma fragmentada.

— Nossa mata virgem cênica tem poucos elementos. O plástico, que é cruel. Quase nenhum efeito de luz. Maquiagem, só nos pés. Para ficar muito nítida a força criativa que a vida tem. De poder tudo com nada. Mas, para poder, o nível de enfrentamento se dá através da ação — conclama.

De uma ação que, paradoxalmente, tem como matriz uma imemorial preguiça, entendida como disposição crítica, e não pela visão míope que muitos fazem do termo que compõe o principal bordão do herói indígena, preto, branco, verdadeiro, mentiroso, indolente, obreiro, feio, sensual, corpo, estrela.

— Como disse a Verônica Stigger, que fez a adaptação do livro sobre a qual fomos fazendo a escrita cênica com base no improviso, é uma preguiça do mundo como ele está hoje. É um “Ai, que preguiça” de tudo. Ai, que preguiça, o que está acontecendo. Ai, que preguiça, a esquerda burra desse jeito. Ai, que preguiça de a gente não poder estar junto. Ai, que preguiça de o quanto somos grotescos, apesar de nossa grandeza.

‘Criar dificuldade’

Nessa trilha de traduzir conceitos, o “sem caráter” também cai no foco da incerteza: caráter é aquilo que se tenta formar, e, longe do crivo moral, é aquilo que caracteriza a espécie em sua busca de ser, o que rima com o Brasil “desgeografizado” de Mário, que buscava um nacionalismo, no mínimo, das Américas, mas filho também da Europa.

— Hoje, Macunaíma não discute só o caráter brasileiro, mas o que significa ser humano num mundo tão desumano como o que fizemos. Que não nos serve. Através desse fluxo contínuo que se dá no palco. Antunes (Filho, diretor de uma clássica versão de “Macunaíma” em 1978, na qual Bia trabalhou) falava: “o bacana é criar dificuldade”. Um livro de Jung que Antunes me deu dizia que o homem vem do animal, mas este ainda não desenvolveu de fato seu lado racional. Ainda somos embriões, cínicos.

'Macunaíma', de Antunes Filho: montagem histórica Foto: Divulgação
'Macunaíma', de Antunes Filho: montagem histórica Foto: Divulgação

A reação, diz Bia, pode vir de uma militância tão mutifacetada quanto a cultura dos povos.

— Cada um na sua categoria, mas em busca de alguma humanidade que nunca existiu. Em busca do caráter da espécie. De algo que ainda não nasceu.

Todo mundo nu

Foram oito meses de ensaios, num processo que desnudou certezas, inibições e o corpo de todos, exposto durante a maior parte da peça.

Na pele escura de Macunaíma índio, Hugo Germano se viu como veio ao mundo, saindo de um embrião sob uma placenta de plástico.

— Ali, eu lutei para viver.

André Alves, o Macunaíma branco, despiu-se da moralidade:

— Sem caráter é sem julgamento. A gente tirou a roupa e não vai botar nunca mais. É, como no texto, a “inteireza” de nosso caráter.

Difícil, tanto, não é tirar a roupa. É o que vem depois, na convivência.

— Resvala em lugares de que não tínhamos consciência. Uma demanda emocional que não se calcula — descreve Sofia Teixeira, que vive vários papéis.

Eduardo Rios, também polivalente, é mais explícito.

— Absorvemos odores, texturas, dos corpos, do plástico. Uma fisioterapeuta teve que intervir com um trabalho de contorno: ampliar as fronteiras, mas saber quais são os limites.

Arnaldo Bloch viajou a convite da produção