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Cultura

Marcelo Leite narra viagens e pesquisas psicodélicas em novo livro

Em 'Psiconautas', jornalista relata como substâncias psicoativas vem sendo reabilitadas pela ciência para tratar distúrbios psiquiátricos como a depressão
O jornalista científico Marcelo Leite, autor de "Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira", livro publicado pela editora Fósforo Foto: Divulgação
O jornalista científico Marcelo Leite, autor de "Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira", livro publicado pela editora Fósforo Foto: Divulgação

No dia 24 de novembro de 2018, o jornalista Marcelo Leite, autor de livros como “Promessas do genoma” e “Ciência: use com cuidado”, se entregou à “força”, como é chamado o estado de alteração da consciência provocado pela ingestão de ayahuasca , caracterizado por um rebaixamento do impulso de emitir juízos sobre situações e pessoas. Leite tomou o líquido espesso, agridoce e cor de mel durante um ritual do Santo Daime . Viu linhas e pontos de luz formando padrões geométricos e sentiu o corpo relaxar. Tinha 61 anos .

Leite, que havia experimentado ácido uma única vez, na adolescência, aproximou-se das substâncias psicoativas em 2017, quando acompanhou, como jornalista, o congresso Ciência Psicodélica, na Califórnia, que reuniu pesquisadores do mundo todo interessados em reabilitar as drogas psicodélicas para o tratamento de distúrbios como a depressão e o transtornos de estresse pós-traumático (TEPT) . Terminado o congresso, juntou-se a alguns pesquisadores e ingeriu 120 miligramas de metilenodioximetanfetamina (MDMA), popularmente conhecida como ecstasy. Ficou subitamente mais falante de disposto a conversar com estranhos sobre as alegrias de ser avô.

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No recém-lançado “Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira”, Leite narra essas e outras experiências psicodélicas. Não se trata de um livro à la “As portas da percepção”, no qual Aldous Huxley, autor de “Admirável mundo novo”, descreveu alucinações provocadas pelo consumo de mescalina, mas de divulgação científica. Leite mostra como LSD, ayahuasca, MDMA, ibogaína (substância extraída de uma planta da região do Gabão, na África) e psilocibina têm sido utilizadas (inclusive por cientistas brasileiros) para tratar distúrbios psiquiátricos e até dependência química.

Leite junta as descrições de suas experiências alucinógenas com os relatos de pesquisadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, militantes antiprobicionistas e de pacientes que apresentaram melhora após tratamentos experimentais com psicodélicos. Um deles, um pescador potiguar, cuja depressão não cedia nem com remédios, parou de “pensar besteira” depois de tomar ayahuasca no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal.

Sem 'pílula mágica'

Estima-se que, no mundo, haja 300 milhões de deprimidos, dos quais um terço é resistente aos antidepressivos . Tratamentos alternativos unem a ingestão de psicodélicos com psicoterapia. As drogas agem como “lubrificantes cerebrais”, relaxando as redes de comando e controle, o que resulta no que pesquisadores britânicos chamam de “dissolução do ego”.

— Os psicodélicos facilitam o acesso a conteúdos traumáticos de maneira menos dolorosa do que geralmente ocorre em terapias convencionais. Pacientes com TEPT conseguem revisitar as experiências traumáticas sem reviver toda a dor — explica Leite, que alerta: os psicodélicos não são uma panaceia. — Desde o surgimento do Prozac, procuramos pílulas mágicas para acabar com a tristeza, mas nada na vida é assim. Nem os psicodélicos.

O tratamento com substâncias psicoativas é complexo e exige uma infraestrutura específica, um “setting”. A droga deve ser tomada num ambiente acolhedor, com iluminação tênue e música ambiente, e na presença de uma dupla de terapeutas treinados (geralmente, uma homem e uma mulher) que acompanham o paciente em toda a viagem, que pode levar horas. Tudo isso torna as terapias psicodélicas potencialmente caras. A Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, estima que, até 2030, a aliança entre a psicodelia científica e a indústria farmacêutica vai movimentar cerca de US$ 100 bilhões.

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A intensificação da guerra às drogas , a partir dos anos 1970, desacelerou as pesquisas com substâncias psicoativas. Ainda há preconceito com quem faz ciência psicodélica, no entanto, o maior desafio dos pesquisadores brasileiros é a falta de financiamento. Segundo Leite, a psicodelia ainda não entrou na mira dos conservadores.

— Recentemente, uma nota técnica do Ministério da Cidadania desaprovou a utilização da ibogaína em clínicas de tratamento de dependentes químicos. Os conservadores privilegiam as comunidades terapêuticas religiosas — afirma. — Universidades do mundo todo estão pesquisando os psicodélicos. Não é coisa de ex-hippie, de bicho grilo.

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Desfazer preconceitos e alertar o público dos benefícios da ciência têm sido o ganha pão de Leite nas últimas quatro décadas. O crescimento do negacionismo, diz ele, tornou a prática do jornalismo científico “particularmente dolorosa”.

— É triste ver a ciência perdendo o espaço que já teve, no sentido de ser uma espécie de terreno comum de objetividade a que todos se referem para fazer a discussão avançar. Evidências e dados perderam valor. Tudo é o opinião — lamenta.

Leite está aberto a novas experiências psicodélicas. Ele confessa que as substâncias psicoativas o ajudaram a ensaiar uma reconciliação com a própria mortalidade .

Capa de "Psiconautas: viagem com a ciência psicodélica brasileira", livro do jornalista Marcelo Leite publicado pela editora Fósforo Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Psiconautas: viagem com a ciência psicodélica brasileira", livro do jornalista Marcelo Leite publicado pela editora Fósforo Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira".

Autor: Marcelo Leite. Editora: Fósforo. Páginas: 264. Preço: R$ 69,90.