LONDRES — Como todo fã de Harry Potter sabe, Londres é uma cidade acostumada a ver multidões na porta de livrarias na véspera da chegada de um novo livro. Mesmo assim o lançamento, nesta terça-feira, de “Os testamentos”, de Margaret Atwood , foi um evento literário sem precedentes, comprovando o status de fenômeno pop atingido pela escritora canadense de 79 anos.
LEIA MAIS: Loja online envia por engano livro continuação de 'O Conto da Aia' antes do lançamento
Antes da meia-noite, já havia centenas de pessoas enfileiradas na maior livraria de Picadilly Circus, à espera da sequência de “ The handmaid’s tale ” (“O conto da aia”). Mais de três décadas depois de criar a fictícia Gilead, república fundamentalista cristã instalada no que um dia havia sido os EUA, a autora decidiu que era hora de retomar a distopia, popularizada pela premiada série de TV . Sentiu-se empurrada pela realidade opressiva atual.
— Durante anos achei que estivéssemos nos afastando da fantasia de Gilead, mas então as coisas começaram a mudar — disse a escritora, citando o 11 de setembro, a crise financeira mundial e a última eleição americana, que consolidou o clima de crescente polarização política. — Quis voltar a Gilead para contar como os regimes começam a cair — explicou, durante uma apresentação com ingressos esgotados no National Theatre, transmitida ao vivo em mais de mil cinemas espalhados pelo mundo.
![Margaret Atwood conversa com fãs vestidas de aias Foto: DYLAN MARTINEZ / REUTERS](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/23939763-2fb-d3c/FT1086A/84502151_Author-Margaret-Atwood-speaks-with-people-dressed-as-hand-maidens-after-reading-an-extract.jpg)
Antes da sessão, na qual as atrizes Lily James, Sally Hawkins e Ann Dowd (intérprete da cruel e complexa Tia Lydia) leram trechos do livro — que chega ao Brasil em novembro pela editora Rocco —, a autora já havia participado da festa de lançamento, em plena madrugada. Parecia se divertir com o circo montado no centro de Londres, com a presença de fãs vestidas com a capa vermelha que cobre as mulheres forçadas a gerar filhos para os fanáticos religiosos de Gilead. A roupa virou símbolo de resistência, um grito de guerra feminista que encanta Margaret.
— Acho brilhante quando mulheres aparecem vestidas assim para protestar contra homens de terno que aprovam leis que não são sobre eles e sobre as quais não entendem nada — soltou a escritora, reforçando que Gilead é inspirada em elementos de diferentes regimes autoritários ou genocidas. — Não sou tão criativa assim.
LEIA TAMBÉM: 'The Handmaid’s Tale': Os acontecimentos reais que inspiraram Margaret Atwood
Ela revelou que começou a escrever a segunda parte de sua obra mais conhecida em fevereiro de 2017, poucos meses depois da eleição de Donald Trump. As filmagens da série de TV lançada pelo Hulu ( também disponível no Globoplay ) foram iniciadas antes da ascensão do republicano, mas todos os envolvidos sabiam que a virada radical à direita daria à produção uma outra dimensão política em meio ao avanço do ultraconservadorismo.
No livro escrito em 1984, quando a autora morava no lado ocidental de uma Berlim dividida pelo Muro, a narradora é Offred (vivida na TV por Elisabeth Moss ), uma aia — mulheres férteis cuja única função é engravidar e entregar seus filhos para casais da classe dominante. Para isso, são estupradas todos os meses por seus comandantes. Em “Os testamentos”, a voz de Offred — ou June, seu nome verdadeiro — é substituída pelas de três mulheres.
![Fila para o lançamento de 'Os testamentos', novo livro da autora de 'The handmaid's tale' ('O conto da aia'), em Londres Foto: DYLAN MARTINEZ / REUTERS](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/23939767-1f5-3ab/FT1086A/84499337_People-dressed-up-as-characters-from-Margaret-Atwoods-The-Handmaids-Tale-queue-to-get-a-c.jpg)
A principal é Lydia, uma das responsáveis pela ordem teocrática. As outras duas são as adolescentes Agnes e Daisy, a primeira criada sob o obscurantismo de Gilead, e a segunda no democrático Canadá. Quem assistiu às três temporadas da série não terá dificuldades para entender, logo nas primeiras linhas, quem são as jovens. A sequência começa 15 anos depois de June ser atirada numa van e desaparecer. Na continuação da saga, o verde disputa espaço com o vermelho das aias: é a cor usada pelas meninas prontas para se casar. Foram criadas sem saber ler e escrever. Só sabem desenhar.
Apesar do tom angustiante, a escritora se diz uma otimista:
— Uma palavra depois de uma palavra depois de outra palavra significa poder — lembrou, pedindo que as mulheres não se calem.
Obras complementares
No epílogo de “O conto da aia”, sabe-se que Gilead ruiu e, centenas de anos depois, continua a ser estudado por historiadores. Mas como a queda foi provocada pela resistência é o tema que permeia a nova narrativa hipnotizante de Margaret Atwood, que tem ritmo de thriller.
A autora procurou não desmentir a trama televisiva, permitindo que as duas obras se complementem. É um casamento multimídia que já rendeu dois Globos de Ouro, 11 prêmios Emmy e oito milhões de livros vendidos, sem contar “Os testamentos”, finalista do Man Booker Prize, um dos mais importantes prêmios literários do mundo . Bendito seja o fruto, diria June.
![Capa do livro 'Os testamentos' (Rocco), de Margaret Atwood, lançado no Brasil em novembro de 2019 Foto: Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/23939745-586-7a7/FT450A/capa-do-livro-Os-testamentos-Rocco-de-Margaret-Atwood-lancado-no-brasil-em-novembro-de.jpg)
Serviço
“Os testamentos”
Autora: Margaret Atwood. Editora: Rocco. Lançamento no Brasil: Novembro/2019