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Cultura

Maria Ribeiro: 'Sou aquela que quer casar e depois falar mal do casamento'

Atriz e diretora, que está no ar em 'Império', explica por que misturou política e separação no filme ‘Outubro’, admite que em seu trabalho ‘existe vontade de aparecer’, e conta que criação machista a fez ter desprezo por mulher
Maria Ribeiro: 'Depois do Paulo (Betti), fiquei traumatizada com a coisa da política. Eu acordava, e o cara já tinha lido oito editoriais do Élio Gaspari' Foto: Manuel Águas / Divulgação
Maria Ribeiro: 'Depois do Paulo (Betti), fiquei traumatizada com a coisa da política. Eu acordava, e o cara já tinha lido oito editoriais do Élio Gaspari' Foto: Manuel Águas / Divulgação

Quando João viu a mãe sendo xingada de "noiva cadáver" pelo Twitter, ficou apavorado. Ligou no celular dela e implorou: "Pelo amor de Deus, sai daí, que tô com medo". Eram as vésperas das eleições de 2018, e Maria Ribeiro estava cercada por apoiadores de Bolsonaro numa manifestação na Avenida Paulista. Usava o vestido branco com que se casou com Caio Blat, 11 anos antes, e rodava uma cena de "Outubro", misto de documentário e ficção que dirige ao lado de Loiro Cunha e está disponível no Now. O filme registra um país dividido e faz um paralelo entre a tensão política e o fim de um casamento.

Maria usa o vestido de noiva com que se casou com Caio Blat em cena do filme 'Outubro', em cartaz no Now Foto: Reprodução
Maria usa o vestido de noiva com que se casou com Caio Blat em cena do filme 'Outubro', em cartaz no Now Foto: Reprodução

Maria foi casada com o politizado Paulo Betti (pai de João, de 18 anos). Havia se separado há pouco de  Caio (com quem teve Bento, de 11), uma relação que, como muitas, foi impactada por escolhas políticas individuais divergentes. Vivia a descrença no amor romântico e resolveu se libertar. Passou a dedicar mais à convivência com os amigos e namorou bastante. Assim como os ex-maridos, os ex-namorados viraram seus amigos. E também parceiros profissionais, já que a vida de Maria é uma eterna mistura entre o pessoal e o profissional.

Com Fabio Assunção, ela planeja um filme usando vídeos da época que que namoraram. Com Davi Moraes, a trilha sonora de "Leonídio", documentário de Maria sobre seu pai, um executivo que perdeu a fortuna na bolsa. Outra prova de como a pessoa física e jurídica se misturam é o livro "Desromance", ficção inspirada em histórias de família, que escreve para a Companhia das Letras.

Ela, que está no ar na reprise da novela "Império", também prepara a volta da peça "Pós-F", com textos de Fernanda Young, e roda a segunda temporada da série "Desalma". Planeja ainda uma série no Instagram batizada de "Cemitério dos sapatos" para contar a história dos pares estacionados em seu armário desde que a pandemia começou ("há um ano, só uso uma Havaiana e um All Star").

Na entrevista a seguir, a garota que inspirou música de Gilberto ("Lia e Deia") e ganhou email de Caetano elogiando sua coragem de "enfrentar ideias por conta própria", se define como "uma documentarista vaidosa" e conta que criação machista a fez ter desprezo por mulheres.

Em “Outubro”, há a ideia de que nada poderia ser pior que aquelas eleições. Mas houve tanta coisa, a Covid-19...

O filme já está de época, né? Pensávamos: "Como vamos sobreviver se o Bolsonaro ganhar?". E a gente se acostuma... O mundo acabou umas quatro vezes de lá para cá. Se comparar, lá estava bom, a gente podia sair na rua, as pessoas não estavam morrendo por causa desse cara...

O longa mistura realidade com narrativa pessoal. Seria uma prova do que seu pai dizia sobre você só estar feliz quando é o centro das atenções?

Isso não é mais verdade porque já tomei muito na cabeça com fofoca. Sempre achei que estava na conta, que optei por isso e tinha mais bônus do que ônus. Hoje, não. Tanto que não exponho mais tanto a vida pessoal. Mas, profissionalmente, acho que meu lugar é o de documentar os outros e o que está acontecendo. Meu rolo de câmera é o meu trabalho. Tanto que estou finalizando o documentário do meu pai. Ao mesmo tempo, existe uma vaidade, uma vontade de aparecer. Talvez, o que eu mais seja é documentarista, mas uma documentarista vaidosa, que quer aparecer no documentário ( risos ).

Você tem a capacidade de elaborar sua vida e transformar em projetos...

É terapêutico, uso o trabalho para me analisar. Os filmes são um pouco isso. Tenho uma questão da casa, do pessoal, do que estou sentindo, do meu amor e desamor, dos amigos. E estou ficando mais corajosa. O filme do meu pai me dá medo, porque é o de maior exposição. Apesar de outubro falar de casamento e separação. Não consigo distinguir pessoa física de jurídica. Tenho um projeto de filme com a Vera Egito, que é com o Fabio Assunção. A gente quer usar vídeos de quando estávamos namorando. Tudo meu é meio junto.

Lembro em 2014... Sempre achei que dava para cada um do casal votar em uma pessoa. Mas em 2014, o Caio votou no Aécio. Eu falei: "Caralho". Posso achar a Dilma sem talento nem para ser síndica, mas acho que é aquela coisa "por baixo da pedra" do ( Fernando ) Pessoa: tem uma parada que é do mal e outra que é do bem. Impressionante como a política foi ocupando tudo, né? Talvez não faça sentido para ninguém essa associação do casamento com 2018, mas para mim...

Nos últimos anos, você se mostrou mais politizada...

Ganhei uma consciência que não tinha. Porque, depois do Paulo ( Betti ), fiquei traumatizada com a coisa da política. Eu acordava, e o cara já tinha lido oito editoriais do Élio Gaspari. Eu falava: "Quero ler o Segundo Caderno!". Casei com Paulo com 21 anos, ele tinha 44. O cara só falava de política, a onda dele na vida é essa. Mais que amor, paternidade, política é o tesão dele.

O nosso encontro foi maravilhoso, porque é uma diferença de origem muito grande. Country Club com Sorocaba, irmãos analfabetos. Tenho vontade de fazer um filme para o Paulo, porque é um ator gênio que, ultimamente, não tem tido bons papéis.

Suas separações deram certo, né? Por que acha que consegue se dar bem com os ex?

Domingos ( Oliveira ) dizia que quem se amou tem que ficar amigo, se não o mundo fica cruel demais. Penso que, se eu não ficar, ele vai puxar meu pé ( risos ). Acho que é porque, nesse se dar bem, eu incluo não se dar bem também. A gente briga, tem treta, fica sem se falar, discute, desliga o telefone. Não acho que isso seja grandes coisas, pelo contrário, é família.

Casei com dois caras que amei muito e admiro demais. Fico com saudade, quero saber o que estão pensando da vida. E não tenho medo de treta. A vida é estar o tempo todo consertando. Já parto do princípio que é isso, porque se achar que a briga é exceção, a gente fica com medo dela. Brinco no Instagram dizendo "chupa novos baianos", mas a gente tem milhões de estresses.

O que é mais difícil no processo de separação?

Contar para os filhos sem chorar. Separar é horrível, das piores coisas que existem. Sofro pra cacete, não importa se já não gostava mais. Tenho lua em Capricórnio, familinha... Demoro uns dois anos para falar com a pessoa sem segurar o choro.

Ainda acredita no amor?

Acredito. Quando fiz o filme, não acreditava. Tinha um desamor geral, a separação de um país. Antes disso, teve o impeachment da Dilma, aqueles caras votando "pela família". Heloisa Buarque de Hollanda fala: "Família é o crime perfeito". Porque essa coisa rodrigueana de "a família". Ali, eu falei: "Foda-se, não vou mais nesse negócio de família, de estabilidade". Porque isso é todo o mal, a coisa mais reaça e preconceituosa vem dessa instituição familiar. Pensei: "Não vou mais casar".

Na separação, comecei a ter o prazer dos amigos. Eu, que tinha passado a vida inteira casada, namorei pra caramba. Mas não queria mais colocar 80% da minha capacidade de dividir a vida com uma pessoa. Acredito nesses apaixonamentos. Acho que namorei o Domingos, o Gil... Agora, eu tô apaixonada pela Heloisa Buarque de Holanda, lendo tudo dela. Estou sempre apaixonada, mas parei de achar que isso tem que ser a coisa romântica de uma pessoa. Sempre achei que tinha que ser "a" mulher de todos os caras com que me envolvo. Não, eu quero mudar! Quero chegar para os meus filhos e falar: "Olha, você cresce e aí tem mais ou menos umas cinco pessoas muito importantes amorosamente". Vamos mudar essa narrativa.

Outro dia, num podcast, você disse achar um saco não poder mentir orgasmo...

Acho um saco qualquer ditadura. Ninguém resiste à verdade absoluta. Se você tiver achado o meu cabelo uma merda, vou querer que você minta pra mim. Porque não tem solução, já cortei. Às vezes, acho que isso tem muito mais a ver com a pessoa, com o ego, com o se levar muito a sério. Mas esse não é um tema sobre o qual tenha me debruçado, pensado. Pelo contrário. Claro que acho melhor falar a verdade, mas também, se não quiser, grande coisa, gente.

Qual é o lugar sexo na sua vida?

Acho importante, mas não a coisa mais importante do mundo. Se estou casada e numa fase sem tesão, não fico em crise. Acho esquisito essa coisa de se está transando o casal está bem. Às vezes, não tem nada a ver. Tenho amigas que transaram até o último dia antes de separar, e o casamento estava horrível. O meu tesão passa muito mais pelo tesão que estou por mim...

O que pensa sobre os homens da sua geração? De uma forma geral, parecem ter um pouco de medo de assumir seus sentimentos, não acha?

Fico horrorizada. Brinco que, se o cara não tem os tracinhos azuis ( no WhatsApp ), saio correndo. Porque é  simbólico. Tem uma música do Andre Frateschi que fala "dê amor, dê paixão", que os caras estão indo embora na segunda oportunidade. Acho que estão desesperados, não estão segurando a onda. Ainda têm muita dificuldade com a mulher que ganha mais ou tem mais poder. E não teria problema se eles admitissem. A gente tem que falar. Às vezes, tenho inveja da minha melhor amiga  e falo. As mulheres estão muito mais interessantes que os homens.

Outro dia, a Valentina Bandeira ( jovem atriz ) fez um post dizendo: "Estou tão carente que fiquei com um cara branco, hétero" ( risos ). Tipo, a que ponto chegamos. Porque os caras estão desinteressantes. Eu stalkeio, pesquiso, analiso, acho que rede social é uma boa peneira. O esquerdo-macho é uma raça complicada e são muitos, pessoas próximas. Tenho me apaixonado por mulher, pena que, sexualmente, não rola... Me acho uma burra, porque acho que é cultural.

Apaixonada por mulheres, então, no sentido de ler, ouvir e conviver com elas...

É. Porque eu sempre fui muito masculina. Sou muito ligada ao meu pai, ao meu irmão e ao meu primo. Sempre fui a eleita num clube masculino. Os caras que não davam bola para as mulheres, davam para mim, porque era a espertinha, inteligentinha. Perdi muito tempo não dando valor às mulheres à minha volta.

Você já disse que Fernanda Young é mais feminista do que as feministas que vestem a camisa. Por que?

Ela criticava a hiprocrisia do feminismo. O que me incomoda é um feminismo higiênico, sabe? Tipo "ah, não tenho inveja de nenhuma mulher, não compito com nenhuma". É mentira! É muito mais feminista assumir e estar atenta. Tem uma frase do Domingos em "Separações" que é meu mantra. Eles estão separados, ela diz que vai para Paris, ele reclama, e ela responde: "Mas amar não é querer o bem do outro?". E ele: "Não, isso é uma bobagem, uma tolice do tempo em que eu era feliz. O amor é uma selvageria". A  vida é uma selvageria, mas a galera não admite. A gente vai domando.

Seu livro fala sobre esses aspectos da sua criação que você mencionou? É ficção mesmo?

Ficção porra nenhuma ( risos ). É aquela ficção que você vai mudando uns nomes... Mas tudo que boto pra fora, já elaborei. Se a minha separação tivesse doendo, não falaria dela em "Outubro". É até meio calhorda, porque é meio que comercializar a sua dor, a sua história. A minha família tem muitas histórias de angústia, depressão, suicídio, cresci ouvindo isso. Então, é um romance que começa comigo tentando entender...

Entender o que exatamente?

Tive uma tia que se matou quando eu não era nascida, a única irmã do meu pai. Tinha 28 anos, deixou 3 filhos pequenos, um de 5, um de 3 e um de dois. Sempre foi alguém de quem ninguém nunca falou. A partir do feminismo, fui atrás... De alguma forma, sou eu entendendo de onde venho. Sou supermachista, minha família é supermachista, meu pai falava barbaridades. Eu achava terrível, mas era apaixonada por ele.

Seu pai era um superexecutivo que perdeu tudo no jogo...

Era presidente da SulAmérica. Eu era caçula, temporã, e meu pai, que era machista, me escolheu. Dizia: "Você dirige que nem homem, é inteligente que nem homem". Então, eu tinha um desprezo profundo por mulher ao mesmo tempo em que me achava especial. Ele foi o cara que me deu toda a autoestima e me fodeu também. Tudo que tenho de pior é dele e de melhor também.

Ele veio de uma família de intelectuais, virou empresário, se deslumbrou, virou "men of the year "e ficou bobo. Casou com a secretária, sabe aquele clássico? Aí  perdeu todo o dinheiro da bolsa. Achava a vida interessante. Dizia: "Filha, gosto disso, fui muito pobre, muito rico". Criava cavalo no Jockey, era um personagem rodrigueano. É um mundo que não existe mais, graças a Deus!

E um mundo de que a gente fala pouco. Talvez, só João Moreira Salles, Gilberto Braga. Sendo feita disso, eu também tenho vontade. E hoje em dia, não tenho mais vergonha, porque já tive muita. Eu era louca pelo filho da puta. Era, tipo, "meu adorável filho da puta", um Dom Corleone, um cara magnético.

Como esses dramas familiares marcam sua personalidade? Que heranças deixaram? Cresceu com essa ideia do suicídio velado?

Cresci com mentira. Meu pai tinha um irmão que era filho bastardo. Eu não sabia. Um dos filhos da minha tia também se matou e ninguém tocava no assunto. Era tudo cheio de verniz. As coisas não eram faladas. Acho que por isso virei essa pessoa que fala.

Outro dia, estava numa roda e disse "comprei esse gato quando separei do Caio porque o Bento ficou malzão, né, filho?". Vou fingir que isso não faz parte da história do meu filho? Não. Acho que isso é análise. Acho um tesão entender e poder mudar, receber a vida de um jeito e poder viver ela de outro.

Como cuida da cabeça nessa quarentena interminável? Toma ansiolítico?

Rolou muito. Passei por Prozac, Wellbutrin e Zoloft. Mas desde que comecei o "Pós-F", não precisei mais. Impressionante o efeito do trabalho. Mas também não tenho problema com isso. Quem precisa, deve tomar. Porque tem um preconceito, né? Tipo, as pessoas ficam com pneumonia e tomam remédio.

Esse é um assunto com que convivi de perto. Acho muito bom quando falam sobre ele. Eu faço mais propaganda do que uso. Acho que quem precisa fica feliz quando alguém que admira fala: "Eu, às vezes, preciso de ajuda".

Você encarnou a mulher do Capitão Nascimento. Como vê as critícas de que "Tropa de Elite" alimentou o fascismo brasileiro?

Esse é um tema delicado, porque o Zé ( José Padilha, diretor do filme ) é meu primo-irmão e meu grande amigo. Ao mesmo tempo, a gente ficou muito diferente politicamente. Acho injusto colocar essa conta toda no filme. O Zé tinha esse lugar de fala. Foi beber lá no João Moreira Salles e na Kátia Lund, descobriu o ( Rodrigo ) Pimentel (ex-capitão do BOPE ) no "Notícias de uma guerra particular", fez "174", um puta filme. E aí quis falar disso a partir de quem entende. Foi o primeiro a não ficar romantizando. Pegou o cara e deu para ele escrever. Aí, você pode questionar milhões de coisas do Pimentel, do Capitão Nascimento...

Foi a primeira pessoa a falar de milícia. Problematizar em cima disso é muito bem-vindo, mas que bom que bom que tem o filme para problematizar. Alguém foi lá e fez. A gente tem um negócio assim: ficou combinado tinha que amar o Zé Padilha e agora ficou combinado que a gente tem que odiar.

Acho o filme é um documento importantíssimo. Se daqui a 100 anos, escolherem dez filmes que expliquem que país é esse, acho que o "Tropa" vai estar. Pode até explicar o que o país virou, mas também diz muito do que o país era ali. Não é é inventado e não é porque ele está mostrando o que acontece que está assinando embaix. Em "O mecanismo", sim, aí é outra história. Todo mundo me mandou o negócio do "Sensacionalista", dizendo que "O mecanismo" passou pra categoria fantasia. Diziam "manda pro Zé". Eu não! Brigo com ele pra cacete, mas quando todo mundo detona, eu defendo.