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Cultura

'Memes ajudarão a contar a história da temporada covídica', diz artista visual Giselle Beiguelman

Professora da FAU-USP critica os 'emojis arredondados e afetuosos' das redes sociais e afirma que 'infiltração midiática não tem volta'
A artista visual Giselle Beiguelman: "O homem é um ser político. Seu lugar é a pólis, a cidade, a rua. Não atrás da tela." Foto: Jorge Lepesteur / Divulgação
A artista visual Giselle Beiguelman: "O homem é um ser político. Seu lugar é a pólis, a cidade, a rua. Não atrás da tela." Foto: Jorge Lepesteur / Divulgação

SÃO PAULO — Os historiadores do futuro que quiserem compreender a pandemia de Covid-19 devem interrogar os memes que viralizaram durante a quarentena . A tese é de Giselle Beiguelman, artista visual, pesquisadora da cultura digital e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). "É na 'Memeflix' da coronavida que mais rapidamente se põe em questão o cotidiano político brasileiro e as abordagens românticas do teletrabalho", escreve Giselle em "Coronavida: biopolíticas e estéticas do novo normal", texto incluído no livro "No tremor do mundo", organizado por Luisa Duarte e Victor Gorgulho e recém-lançado pela Cobogó. O livro reúne reflexões de mais de 20 intelectuais ( Ailton Krenak , Christian Dunker , Heloisa Starling e outros) sobre o que esperar da realidade pós-pandemia. Em seu ensaio, além de elevar os memes a fonte historiográfica, Giselle cria conceitos como "coronavida", "coronacity" e "capitalismo fofinho".

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No início da quarentena, Giselle criou também o "Coronário". Net art hospedada no site do Instituto Moreira Salles (IMS), o “Coronário” é um dicionário da pandemia em forma de mapa de calor formado pelas palavras e expressões relacionadas à Covid mais buscadas no Google entre março e abril: de "lockdown" a "auxílio emergencial" e "comunavírus". Em entrevista por e-mail ao GLOBO, Giselle listou seus memes favoritos, especulou sobre o impacto da pandemia em nossa cultura urbana e criticou os " emojis arredondados e afetuosos" das redes sociais , que "nunca expressam contestação".

Diante da quarentena como medida de prevenção à pandemia coronavírus, internautas se aproveitaram para encher a internet de memes em referência a nova situação imposta pela doença. Cenas de filmes de sucesso renderam as primeiras montagens, como 'Não me mandem flores', 'Halloween' e '007'.
Diante da quarentena como medida de prevenção à pandemia coronavírus, internautas se aproveitaram para encher a internet de memes em referência a nova situação imposta pela doença. Cenas de filmes de sucesso renderam as primeiras montagens, como 'Não me mandem flores', 'Halloween' e '007'.

O que é a “coronavida”?
É a vida parametrizada pelo coronavírus. A pandemia modifica as formas de sociabilidade, cada vez mais mediadas por imagens e por novas formas de ocupar o espaço público, e de nos relacionarmos com a vigilância algorítmica. Também afeta profundamente nossa compreensão de cidade e cultura urbana . Implica um encolhimento da rua como lugar do encontro, do compartilhamento e da imprevisibilidade.

Você descreve a “coronacity” como a “cidade shopping center, de ruas vazias e pessoas sem rosto” que tende a vingar como “um dos legados do futuro pós-pandemia”. Como a pandemia altera nossa relação com a cidade e a cultura urbana?
Os impactos mais visíveis são a naturalização dos sistemas de vigilância, que transformaram o corpo na senha de acesso aos espaços por meio de câmeras térmicas e termômetros em forma de arma . O distanciamento se tornou o paradigma da vida urbana. Se voltarmos à literatura sobre as cidades, perceberemos que a multidão é um de seus elementos mais recorrentes. O medo da multidão se deslocou do medo do imprevisível para o medo do outro, do contágio. Nossa cultura urbana já foi profundamente modificada pelo vírus. É só reparar, por exemplo, nas ofertas de novo mobiliário para escritórios, que garante a distância entre as pessoas, na contramão do que ocorria com a otimização da divisão do espaço com mais baias e salas de coworking.

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Você afirma que “quem vai contar a história dessa nossa coronavida são os memes”. Por quê?
Memes são uma espécie de jornalismo a quente, que fazem um noticiário paralelo, em tempo real e baseado em imagens. Nada escapou aos memes: a política nacional, o cotidiano das redes, as agruras do teletrabalho.

Quais são os seus memes favoritos da quarentena?
Dois dos memes do perfil "Nazaré amarga" que abriram a temporada "covídica" estão entre os melhores de todos os tempos: aquele em que ela surtava com a possibilidade de ficar trancada em casa e um outro em que expressava o medo de abrir a geladeira e encontrar uma live. A apropriação da história da arte também foi incrível. O meme que mostrava "A última ceia", de Da Vinci, vazia e com o letreiro "cancelled" é histórico. A torrente de memes que se seguiu às polêmicas declarações do presidente Bolsonaro também são inesquecíveis.

Você propõe o conceito de “capitalismo fofinho”, que se contrapõe a outras definições popularizadas a partir dos anos 1990, como “capitalismo informacional”, “capitalismo cognitivo” e “capitalismo criativo”. O que é o “capitalismo fofinho”?
A lógica do capitalismo fofinho se explicita nos ícones gordinhos e arredondados da Web 2.0, um design de informação que parece amortecer qualquer forma de conflito e apresenta um mundo cor-de-rosa e azul-celeste (pense no passarinho do Twitter). A forma mais bem acabada desse tipo de design é a do Facebook, o empreendimento on-line mais bem-sucedido de todos os tempos.

Como assim?
O Facebook é uma máquina de aceitação feliz do mundo, um espaço de relacionamento protegido, jardim murado dentro da rede. O pai do seu amigo morreu? O Japão foi inundado por um tsunami? Uma jornalista sumiu na Líbia? Ótimo, você pode dar "like" e curtir isso tudo com seus amigos. Ou mostrar seu desapontamento por meio de outros emojis arredondados e afetuosos, que nunca expressam contestação e polêmica. Essa dominância é patente também no design de produtos cada vez mais arredondados e sem pontas, que espelham brinquedos eletrônicos, como o antigo game boy, e fazem jus à noção de um mundo amortecido e sem dor.

Os capitalismos "informacional", "cognitivo" e "criativo" transformaram a informação e a produção intelectual em mercadoria. Qual a mercadoria do "capitalismo fofinho"?
A mercadoria somos nós e a moeda são os nossos afetos.

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Que aspectos da "coronavida" podem ser aproveitados no "novo normal"?
A pandemia enriqueceu nossa cultura visual. Ainda que restrita a quem pôde ficar em casa, a experiência de comunicação audiovisual foi marcante. Modificou o telejornalismo, o trabalho, a educação e o entretenimento. Foi importante também a consolidação dos protestos via projeções audiovisuais em grande escala, feitas das janelas, que, na impossibilidade de ocupar as ruas, tomaram o país de ponta a ponta. Essas projeções expandem a arquitetura e dão novas leituras à paisagem urbana. Esse processo de infiltração midiática não tem volta. Contudo, o homem é um ser político. Seu lugar é a pólis, a cidade, a rua. Não atrás da tela.

Capa de "No tremor do mundo: ensaios e entrevitas à luz da pandemia", organizado por Luisa Duarte e Victor Gorgulho e lançado pela Cobogó Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "No tremor do mundo: ensaios e entrevitas à luz da pandemia", organizado por Luisa Duarte e Victor Gorgulho e lançado pela Cobogó Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia”

Organizadores: Luisa Duarte e Victor Gorgulho. Editora: Cobogó. Páginas: 352. Preço: R$ 59,90.