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Cultura

Michel Laub: 'A realidade se tornou tão boçal que ficou impossível sentar para escrever e não enfrentá-la'

Em seu novo romance, 'Solução de dois Estados', escritor retoma as discussões sobre tolerância e dá nome ao 'horror óbvio' que tomou conta do país
O escritor Michel Laub, autor de "Solução de dois Estados", publicado pela Companhia das Letras Foto: Renato Parada / Divulgação
O escritor Michel Laub, autor de "Solução de dois Estados", publicado pela Companhia das Letras Foto: Renato Parada / Divulgação

SÃO PAULO — No meio de “Solução de dois Estados”, oitavo e mais recenete romance de Michel Laub , aparece a reprodução de uma reportagem sobre a artista performática Raquel Tommazzi, que, depois de 2015, passou a dirigir e atuar em filmes em que aparece nua e é humilhada, espancada e pisoteada por homens seminus. Os vídeos eram publicados em sites de pornografia sem aviso nenhum de que tratavam de trabalhos artísticos. Depois, junto com comentários postados por quem os assistiu (“foi é pouco”, “bate até o fim”), iam parar em instalações. Segundo a reportagem fictícia, um desses filmes, trazia “referências diretas à realidade política do país”, “facilmente identificáveis por quem acompanha o noticiário nacional”. “O Brasil está mais óbvio, então é preciso falar disso tudo de modo mais óbvio”, justificou Raquel “Dar nome ao horror óbvio.”

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“Solução de dois Estados” também traz referências diretas à realidade política do país, facilmente identificáveis por quem acompanha o noticiário nacional. O irmão de Raquel, Alexandre, é um miliciano. Sócio de um pastor evangélico, ele passa pano para a cura gay e dispara vídeos em grupos de WhatsApp incentivando protestos contra exposições e campanhas de difamação contra professores que indicam certos livros. Ele gosta de repetir que a irmã “doze arrobas ” e reclamar da “bezerrada” (aquela que cresce e vira gado). Apesar de preferir uma literatura que não tem compromissos explícitos com a política e que se refere apenas indiretamente à realidade, Laub tende a concordar com sua personagem: é preciso dar nome ao horror óbvio — mas, se possível, sem cair na obviedade. Nesta terça-feira (20), às 19h, ele participa de uma live de lançamento no canal da Companhia das Letras no YouTube.

— Sou de uma geração que sempre acreditou que a literatura engajada, panfletária, era um barateamento da arte. Mas, de uns tempos para cá, a realidade se tornou tão boçal, e se esfrega na nossa cara com tamanha violência, que se tornou impossível sentar para escrever e não enfrentá-la. — diz Laub ao GLOBO por telefone. — Comecei a escrever esse livro em 2017 e terminei agora, no meio da pandemia. Foi um desafio sair um pouco da obviedade escrevendo sobre algo tão imediato. O livro é a minha resposta à realidade, não é uma resposta direta. Se fosse, melhor seria escrever um ensaio ou um textão de rede social em vez de ficção.

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Para dar nome ao horror óbvio desviando da obviedade, Laub apostou na forma: “Solução de dois estados” é um apanhado de notícias, roteiros dos vídeos de Raquel, comentários de pornógrafos e, principalmente transcrições brutas de entrevistas para um documentário sobre intolerância. A entrevistadora é a cineasta alemã Brenda Richter, premiada por filmar a violência na Hungria, na Síria e na Venezuela depois que seu marido foi assassinado no Brasil. Os entrevistados são os irmãos Alexandre e Raquel. Ele é dono de uma rede de academias na periferia que nunca perdoou o governo Collor pelo confisco das poupanças. Ela, poucos meses antes da entrevista, arriscou uma performance num seminário sobre a função da arte no combate à violência e acabou espancada, no palco, com uma barra de metal por um capacho do próprio irmão.

Capa de "Solução de dois Estados", romance de Michel Laub publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgaçao
Capa de "Solução de dois Estados", romance de Michel Laub publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgaçao

A tolerância é um tema recorrente nos livros de Laub. Em 2016, antes de expressões como “cultura do cancelamento” e “exposed” caírem na boca dos tuiteiros, ele lançou “O tribunal da quinta-feira”, romance no qual a troca de e-mails entre dois publicitários, um deles gay e soropositivo , repleta de piadas de gosto duvidoso e confissões de adultério, é tornada pública. Se em “O tribunal da quinta-feira” a pregação da tolerância era mais explícita, em “Solução de dois Estados” há mais de um discurso em disputa. Alexandre fala insistentemente em “valores”. Brenda defende as virtudes da tolerância. Raquel, cuja voz se sobrepõe à dos outros personagens, aponta a hipocrisia dos que toleram tudo.

— Cheguei a pensar que a voz da cineasta seria a minha voz, a voz de um certo bom senso, da maturidade, do indivíduo responsável que faz frente à boçalidade, mas, ao longo da escrita, fui mudando. Se eu não mudasse um pouco trabalhando num livro, escrever não seria tão interessante — explica. — Tenho menos medo de desagradar o leitor, de confrontar certezas. Na realidade em que vivemos, o excesso de sutileza passa despercebido ou é signo de um certo conformismo com uma certa política.

Arte para quê?

Depois que Raquel foi espancada, o Banco Pontes, que patrocinava o seminário sobre a função da arte no combate a violência, soltou uma nota pedindo “desculpas a todos os que se sentiram constrangidos pelas cenas de nudez e violência” e evitou defender a artista. “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”, afirmou a nota, que é quase idêntica à divulgada pelo Santander Cultural após o cancelamento da exposição “Queermuseum” , em 2017, acusada de apologia à pedofilia e à zoofilia.

Laub discorda que o “propósito maior da arte” seja este que os bancos (fictícios ou reais) defendem. Mas também se opõe tanto aos que acreditam que a arte muda o mundo quanto aos que não esperam nada dela.

— Me irrita o discurso ingênuo de que uma obra de arte engajada, que fale mal do governo, vá conscientizar as pessoas e mudar a sociedade. Por outro lado, a arte é onde ainda se pode discutir. Não é o Twitter , onde todos se agarram às próprias opiniões, ou os debates da TV, que mais parecem concursos de retórica. A arte permite o deslocamento de certezas, ideias e emoções. Nas redes sociais , está todo mundo tentando convencer o outro e ninguém quer saber de nuances. Não existe “veja bem” na existe na disputa política. Talvez a arte seja o único lugar onde isso ainda é possível. Não se trata de meio-termismo, de achar que tudo tem prós e contras, mas de uma maneira um pouco mais distanciada e rica de ver a realidade.

Serviço:

“Solução de dois Estados”

Autor: Michel Laub. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 248. Preço: R$ 49,90.