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Cultura

Miró e João Cabral de Melo Neto: A amizade entre o pintor e o poeta em livro inédito no Brasil

Poeta pernambucano escreveu ensaio sobre o pintor catalão, seu amigo, em 1950
João Cabral de Melo Neto e Joan Miró entre 1940 e 1950 Foto: Divulgação / Agência O Globo
João Cabral de Melo Neto e Joan Miró entre 1940 e 1950 Foto: Divulgação / Agência O Globo

RIO — Um celebrado pintor catalão na maturidade de sua arte; um jovem poeta pernambucano a serviço diplomático em Barcelona e ainda em busca de sua voz.

Joan Miró e João Cabral de Melo Neto se complementavam, e não é à toa que viraram amigos. O primeiro sempre se interessou pela literatura, fazendo parcerias, ilustrações e “poemas-pinturas” com autores como Paul Éluard, Pablo Neruda e Michel Leiris. O segundo era um poeta instigado pelas artes plásticas. Dessa convivência inspiradora resultou o ensaio “Joan Miró”, um dos poucos trabalhos em prosa do brasileiro, publicado pela primeira vez na Espanha em 1950 com uma pequena tiragem de 125 exemplares.

Raríssimo em seu formato original, o livro sai pela primeira vez no Brasil da maneira que Cabral pensou, com três gravuras exclusivas de Miró (duas no miolo e uma na capa). Reflexão sobre a obra e o processo artístico do pintor, é um atestado da amizade entre os dois artistas a partir dos anos 1940 — e também da influência decisiva do ambiente cultural catalão na produção do poeta.

O lançamento acontece no sábado, a partir das 17h, durante a Feira no Cobogó, no Instituto Moreira Salles. Haverá também um debate com Valéria Lamego, editora e organizadora do livro; o pesquisador Ricardo Souza de Carvalho, que assina o posfácio; e o poeta Eucanaã Ferraz.

— Toda a experiência de Cabral em Barcelona, o convívio com Miró e a escrita desse ensaio são sem sombra de dúvida fundamentais para o poeta — observa Ricardo Souza de Carvalho, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro “A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes”. — A importância desse período para sua obra é reconhecida pela crítica, mas nem tanto como deveria. É algo que ainda merece ser redimensionado.

Gravura de Joan Miró para o livro de João Cabral de Melo Neto Foto: Divulgação / Agência O GLOBO
Gravura de Joan Miró para o livro de João Cabral de Melo Neto Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

Há lacunas nos estudos sobre a passagem de Cabral pela Catalunha, da qual o ensaio é o ponto alto, acredita Carvalho. Motivado pela edição do livro, o autor do posfácio retomou suas pesquisas na região.

— Chama a atenção como nessa época Cabral se dedicou a uma série de atividades fora da poesia, como a tradução, a tipografia e o ensaio — acrescenta Carvalho.

Diplomata, Cabral se mudou para Barcelona em 1947, antes da virada que representou a escrita de “Cão sem plumas” (1950). Tinha 27 anos e enfrentava alguns impasses artísticos. Enquanto não encontrava soluções para a sua própria poesia, dedicava-se à tradução e à edição de outros autores (ele instalara uma prensa manual em casa). Miró, por sua vez, voltara à cidade em 1942 após um exílio no exterior. Proibido pelo ditador Francisco Franco de manter contato com outros artistas, vivia isolado em seu ateliê.

Mas com Cabral era diferente. Por ser diplomata, o brasileiro tinha livre acesso para circular entre escritores e pintores, muitos deles acuados e trabalhando clandestinamente em um regime totalitário. No fim de 1947, o poeta e o artista começaram uma longa amizade, e Cabral teve inclusive o privilégio de ver em primeira mão algumas de suas obras, que estavam proibidas de serem expostas na Espanha.

No brasil, só em 1952

Estudo interpretativo despretensioso — mas afiado — da arte do amigo, “Joan Miró” aponta algumas direções que iriam nortear a própria poesia de Cabral no futuro. A teoria de Carvalho é que, após presenciar o trabalho com os materiais do catalão, o poeta desejou aproximar-se de uma arte mais concreta, de enfrentamento da realidade.

— O encontro com Miró, num período franquista, levou Cabral a uma poesia menos intelectualista, voltada aos objetos e a uma realidade mais prosaica.

“Joan Miró” está saindo pela Verso Brasil (a última edição por aqui havia sido em 1952, sem as gravuras), que já havia publicado em 2016 outro livro raro de Cabral, “Aniki Bobo”. Além de recuperar as gravuras originais, a reedição traz um ensaio fotográfico do tipógrafo Enric Tormo (grande parceiro de Miró), que imprimiu as gravuras do livro.

Tormo, por sinal, inspirou um poema de Cabral, “Paisagem tipográfica”, em que o poeta exalta o “grave ascetismo de operário” do artesão. Os versos foram publicados recentemente na antologia “A literatura como turismo” (Alfaguara), organizada por Inez Cabral, filha do poeta.

— Papai tinha a maior admiração pelo Tormo — conta Inez. — Ele próprio gostava de tipografia. O médico recomendou fazer exercício físico, e ele achou que trabalhar com impressão podia ajudar.

Na edição original, Cabral se utilizou de um recurso conhecido como marginália — anotações na margem da página, que a editora Valéria Lamego fez questão de manter.

— Suponho que ele participou da diagramação do livro e que a edição tenha sido feita a seis mãos, num encontro entre poeta, tipógrafo e pintor ( Cabral, Torno e Miró ) — diz Valéria.

“Joan Miró"

Autor: João Cabral de Melo Neto. Organização: Valéria Lamego. Editora: Verso Brasil. Páginas: 104. Preço: R$ 94,80 .

TRECHO:

- Em Miró, mais do que em nenhum outro artista, vejo uma valorização do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer é o meio para chegar a um quadro, para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Miró, é um pretexto para fazer. Miró não pinta quadros. Miró pinta.

- Essa valorização do trabalho de criar implica, forçosamente, deixar em plano secundário tudo aquilo que — assuntos, anedotas, intenções — constitui normalmente o móvel e a justificação desse trabalho. Em Miró, isso é muito fácil de ser comprovado. Há em toda a sua obra um absoluto desinteresse pelo tema, expressado na limitação e mínima variação de linguagem simbólica e, sobretudo, no esvaziamento desse mesmo simbólico.

- Uma estrela ou uma lua, num quadro, podem pertencer ao domínio do idiomático ou do caligráfico. Mesmo em épocas em que parece mais interessado em fazer uma pintura literária (isto é, em empregar um idioma) é fácil constatar como o pintor vai corroendo internamente seu vocabulário — essa lua ou essa estrela — até deixá-lo inteiramente vazio de qualquer valor semântico. Não sei se têm pensado nisso os que propõem para essa obra chaves de decifração, como se se tratasse de um volapuque lírico.