Cultura

MPB4 e o sabor de recomeço

Patrimônio da música vocal brasileira, grupo supera a perda do fundador Magro e volta ao palco com novo cantor

Vindo do Arranco de Varsóvia, Paulo Malaguti (ao piano) estuda com afinco as gravações de seu antecessor para os espetáculos que o MPB4 (com Aquiles, Miltinho e Dalmo, na ordem) fará na semana que vem no Teatro Rival
Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Vindo do Arranco de Varsóvia, Paulo Malaguti (ao piano) estuda com afinco as gravações de seu antecessor para os espetáculos que o MPB4 (com Aquiles, Miltinho e Dalmo, na ordem) fará na semana que vem no Teatro Rival Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO - Boleros? Em seus espetáculos de outrora, o grupo MPB4 costumava ter um número só com eles. Era o momento teatral (para não dizer humorístico) da noite. Aquiles encarnava o espectador bêbado que ficava falando besteira na mesa do bar, enquanto Miltinho (ao violão), Ruy Faria (nas maracas) e Magro Waghabi (no atabaque), com seus sombreros , desciam para a plateia e cantavam conhecidos boleros como “Perfidia” e “El reloj”.

— A gente cantava de sacanagem. E era um sucesso! Mas porque era feito direitinho, embora em uma onda bem cafona. Nos solos, a gente ficava horas numa nota só... — recorda-se Miltinho, hoje parte de um MPB4 que se prepara para fazer shows, sexta e sábado da semana que vem, no Teatro Rival, de um disco muito, muito sério de boleros: “Contigo aprendi”.

— Aquilo demonstrava o quanto a gente sempre gostou de boleros — explica Aquiles, o bêbado dos outros tempos do MPB4. — Sempre tivemos vontade de fazer o bolero pra valer, com uma roupagem moderna, instrumental e vocal.

Lançado ano passado, “Contigo aprendi” foi o último disco do MPB4 com um dos seus fundadores, Magro Waghabi, arranjador, diretor musical, pianista e segunda voz do grupo, que morreu em agosto, após uma longa batalha contra o câncer. Os shows no Rival marcarão a estreia carioca do novo integrante, Paulo Malaguti, do Arranco de Varsóvia, que se junta agora a Aquiles, Miltinho e Dalmo Medeiros (substituto de Ruy, que deixou o grupo em 2004) nesse verdadeiro patrimônio da música vocal brasileira.

— Foi um disco difícil de se fazer, com arranjos elaborados, a gente ensaiou que só o cão — revela Miltinho. — Começamos a gravá-lo em 2009, e no ano seguinte o Magro iniciou um tratamento mais intensivo. No fim, ele conseguiu gravar o CD todo. Mas a gente não pôde fazer o show de lançamento como queria.

A seleção de repertório já se apresentava como um problema: tantos boleros, um disco só para preencher...

— Duas músicas tinham que entrar de qualquer jeito: “El reloj” e “La barca”, que qualquer sujeito sabe cantarolar — conta Miltinho. — Depois, conversando com o ( advogado especializado em direitos autorais e letrista ) J.C. Costa Netto, o Magro descobriu que ele tinha uma versão de “Sabor a mi”, “Sabor em mim”. A partir daí, a gente foi definindo mais rápido.

Para fechar a questão, o MPB4 decidiu mandar os boleros selecionados para um time de compositores fazer versões em português. Entre eles, Carlos Rennó (“La barca”/“A barca”), Celso Viáfora (“El reloj”/“Relógio”), Caetano Veloso (“Sabra Diós”/“Sabe Deus”), Abel Silva (“Tu me acostumbraste”/“Tu me acostumaste”) e Hermínio Bello de Carvalho (“Quizás, quizás, quizás”/“Quiçá, quiçá, quiçá”).

— Ficamos com um material na mão que ninguém tinha. Era ouro em pó — gaba-se Aquiles.

O disco conta com instrumentistas e arranjadores como Luís Bueno e Fernando Melo, o Duofel, além do Quarteto Maogani, do guitarrista Toninho Horta e do Trio Madeira Brasil. Magro fez boa parte dos arranjos vocais e ainda participou, de cadeira de rodas, de algumas apresentações antes que o disco fosse lançado.

— Foram dias muito difíceis, ele fazia questão de ir a todos os shows antes de ser internado, e era muito sacrificante. Mas nunca tinha queixas — conta Aquiles, que, por morar em São Paulo, esteve bem próximo de Magro nos últimos dias. — Nós convivemos mais com o MPB4 do que com nossas famílias. Era coisa de irmão, nunca deixamos de ter brigas, arranca-rabos e chateações, que, logo depois, passavam como se não tivesse acontecido nada. Todos nós tínhamos uma admiração muito grande pelo Magro. Ele é muito mais do que as pessoas conhecem.

— O responsável pelo sucesso musical do MPB4, temos que reconhecer, é o Magro — segue Miltinho, que, assim como Aquiles e Ruy, conheceu o amigo em Niterói, quando integraram o Centro Popular de Cultura da Universidade Federal Fluminense. — O Magro era o cara que, quando a gente tinha uma gravação no dia seguinte e não havia tempo para ensaiar, dizia: “Não tem problema, a gente faz no estúdio.” Ele se sentava ao piano e mandava: “Você canta isso aqui, você isso aqui...” A cabeça dele vivia fervendo com esse negócio de vocal. Foi difícil pensar em continuar sem ele.

A solução para o impasse estava justamente no cantor que substituíra Magro nos shows em que ele esteve doente demais para participar: o pianista, arranjador e cantor Paulo “Pauleira” Malaguti, que, além do Arranco de Varsóvia, tinha integrado o finado Céu da Boca — grupo vocal do começo dos anos 1980, no qual também estiveram a cantora Verônica Sabino e outro futuro MPB4, Dalmo.

— O MPB4 sempre me impressionou por reunir qualidade e apelo popular — conta Paulo.

— Independentemente do sucesso, o MPB4 sempre fez shows no Brasil inteiro — observa o cantor Zé Renato, que acaba de voltar a outro grupo vocal de sucesso, o Boca Livre. — E, tudo isso, muito pelo grande rigor na escolha de repertório e pela qualidade dos arranjos do Magro. Quando lembro do MPB4, penso em um grupo com uma sonoridade cheia de personalidade.

Aquiles conta que mais difícil do que o primeiro show foi o primeiro ensaio sem Magro.

— Eu vim de São Paulo, cheguei mais cedo e nem o Miltinho estava na casa dele. Entrei no escritório e fiquei sentado, pensando: “Pô, o Magro não vem!” E, bem na minha frente, estava um quadro com um poema que o Paulo Cesar Pinheiro tinha feito na morte dele, em homenagem. Eu estava ali, mas não estava.

— Depois do trauma, estamos nos levantando. Conseguimos ter uma formação nova, que atende ao que o MPB4 pretende fazer. A ideia é perpetuar esse trabalho do Magro — planeja Miltinho, que espera ver ainda este ano o lançamento de “Vozes do Magro”, livro com as partituras dos arranjos e textos que ele escreveu, contando as histórias por trás das músicas mais representativas do MPB4. — E aí, quem sabe, no futuro, venham arranjos do Pauleira, arranjos meus... Vamos seguir.

Décadas a serviço da música popular brasileira:

1965

Após a extinção dos Centros Populares de Cultura, o Quarteto do CPC, de Niterói, se rebatiza de MPB4, com a proposta de cantar apenas música popular brasileira.

1967

Ao lado de Chico Buarque, e com arranjos vocais de Magro, o grupo defende a canção “Roda viva”, de Chico, no III Festival de Música Brasileira. Ela fica em terceiro lugar.

1971

A parceria do MPB4 com Chico Buarque chega ao ponto alto no disco “Construção”, apresentado em show no Canecão com a OSB e o pianista Jacques Klein.

1972

Batendo de frente com a Censura e o regime autoritário, o grupo lança um de seus melhores e mais aguerridos trabalhos: o LP “Cicatrizes”, com faixa-título assinada por Miltinho e Paulo Cesar Pinheiro.

1974

O MPB4 vira sucesso de vendas com o LP “Antologia do samba”.

1980

Ano de grandes êxitos com “Vira virou” (Kleiton Ramil) e “A lua” (Renato Rocha). Em 1981, o grupo volta às paradas com “O pato”, do especial infantil de TV “A arca de Noé”.

1989

O MPB4 lança o LP “Amigo é pra essas coisas”, gravado em um bem-sucedido show no qual o grupo foi acompanhado por seus filhos.

2006

Sai o DVD “MPB4 — 40 anos ao vivo”, com participações de Chico e Cauby Peixoto.