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Arnaldo Antunes: 'A gente fez um disco que tinha uma vontade engasgada de chorar'

Aos 61 anos, assustado com a 'normalização da barbárie no Brasil', cantor lança 'Lágrimas no mar', álbum desiludido e desolado que fez acompanhado apenas pelo piano de Vitor Araújo
O cantor Arnaldo Antunes e o pianista Vitor Araújo Foto: José de Holanda / Divulgação
O cantor Arnaldo Antunes e o pianista Vitor Araújo Foto: José de Holanda / Divulgação

Primeiro disco do ex-Titãs Arnaldo Antunes baseado apenas na combinação de piano (a cargo do pernambucano Vitor Araújo , de 32 anos) e voz, “Lágrimas no mar” traz um dado curioso para a obra do artista paulistano de 61 anos: ao lado de uma canção que ele compôs com Erasmo Carlos (“Manhãs de love”, gravada pelo Tremendão no álbum “Gigante gentil”, de 2014 ), está “Como 2 e 2” – composição de Caetano Veloso sobre os tempos de chumbo do Brasil, transformada em clássico do romantismo dark por Roberto Carlos em seu lendário LP de 1971 . As lágrimas não estão no título por mero acaso.

— O disco tem emoção, ele ficou comovente. Mesmo sem falar explicitamente de pandemia ou de política, afinal a maioria das suas canções são de amor, ele tem uma desolação e uma desilusão que retratam muito bem a atmosfera do momento que a gente está vivendo — confirma Arnaldo, em entrevista por Zoom, ao lado de Vitor Araújo. — Isso é algo que, claro, você pode encontrar na obra de Roberto e de Erasmo, e no cancioneiro brasileiro. Mas acho que tudo aconteceu de forma inconsciente, levando a gente a fazer um disco que tinha uma vontade engasgada de chorar.

Em “Como 2 e 2”, o cantor dividiu com a mulher, Márcia Xavier, aqueles versos bem conhecidos da música brasileira: “meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco”.

— Nesses tempos em que a gente vive essa normalização da barbárie, da brutalidade, da violência e da intolerância, tem essas pessoas que dizem que está tudo bem... e não está! Tive o desejo de dizer isso — explica Arnaldo.

— Tem um conflito muito grande entre o que a letra está dizendo, cantada de forma quase plácida por eles, e a minha interpretação no piano, uma coisa mais impávida. Existe uma ironia ali, que está sendo posta sob holofote com o nosso arranjo — arremata Vitor Araújo.

A vontade de fazer um disco só com voz e piano surgiu Arnaldo Antunes partiu para montar o show de “O real resiste” , indignado e triste álbum que ele lançou em 2019, em reação ao momento político e social do país no qual, em suas palavras de então, “você vê gente defendendo a tortura, a ditadura e a Censura, e negando o aquecimento global”.

— Aquele era um disco enxuto que eu quis enxugar ainda mais e por isso convidei o Vitor para me acompanhar. A nossa sintonia foi um achado. A gente veio ensaiando o show e aí teve a pandemia e só fizemos algumas lives mais à frente, sem público, mas no palco de um teatro. Ficamos nesse limbo, à espera da volta dos shows presenciais e, ao mesmo tempo, com esse trabalho fresco, querendo fazer mais coisas — conta o cantor, compositor e poeta.

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Inicialmente, a ideia era meramente registar em estúdio o que eles prepararam para as lives, feitas em espaços como o Teatro Municipal de São Paulo, o Sesc Pompeia e o museu de Inhotim.

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— Aí o Vitor sugeriu que a gente fizesse algo novo, com alguma coisa que ainda não tivéssemos arranjado para o show. Comecei a ver que tinha músicas inéditas, como a que eu fiz com o [ guitarrista ] Pedro Baby, que acabou dando título ao disco. Foi ela que despertou o desejo de gravar o disco da forma como ele saiu — diz Arnaldo.

“Lágrimas no mar” acabou reunindo quatro canções inéditas (a faixa-título, “Enquanto passa outro verão”, “Umbigo” e “A não ser”), duas releituras da própria obra de Arnaldo (“Longe” e “Fora de si”), a parceria com Erasmo Carlos e duas canções de outros autores (“Como 2 e 2” e “Fim de festa”, de Itamar Assumpção”). Ele foi gravado no Canto da Coruja, estúdio no sítio de Arnaldo em Piracaia, interior de São Paulo, onde ele fez seus dois últimos discos, no sítio, bem próximo da natureza, em total concentração.

— A gente ficou uns dez dias nesse processo imersivo, que teve uma série de efeitos artísticos. “Lágrimas no mar” é um disco que tem bastante ar e espaços vazios. Houve uma busca por simplicidade de interpretação — revela Vitor, que aproveitou a imersão para fazer experimentações de captação com os microfones (“em todo lugar tem um pouco dos sons da fazenda, quando fica muito silêncio você ouve os passarinhos e os patos”) e de execução. — A maior parte dos sons que você ouve no disco são de voz e piano. Mas não que tivéssemos feito grandes alterações na pós-produção, foi tudo acústico, com instrumento preparado, efeitos percussivos e várias camadas de som. O piano tem uma máquina muito ampla em termos das possibilidades de ruídos.

Turnê no ano que vem

Depois do adiamento da turnê “O real ao vivo”, por causa da Covid-19, Arnaldo e Vitor são cautelosos: apresentações do novo disco, só a partir de março de 2022. Os ensaios começam em janeiro.

— Agora, o show vai ser transformado pelo repertório do disco novo e se integrar com o que a gente vinha fazendo nas lives. Vai ser um outro show, o do “Lágrimas no mar”. É uma sensação muito louca, sinto a maior falta de fazer shows, do contato com o público. Desde que comecei a carreira nunca fiquei tanto tempo longe dos palcos — confessa Arnaldo.

O cantor diz que passou este ano tentando se mantar ativo e criativo (lançou o livro de poemas “Algo antigo” e participou do disco “Contato imediato”, que a cantora Anna Ratto dedicou exclusivamente a sua obra), mas que nada se compara a fazer shows:

— É um descarrego de energia que me mantém saudável. Esperamos que as coisas melhorem a cada mês e que finalmente a gente possa fazer essa turnê. Tem muita ansiedade e entusiasmo para essa volta.