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Cultura Música

Dona Ivone Lara: samba de Zé Kéti, canções inéditas, live e livro antecipam centenário

Eventos comemoram o aniversário de uma histórica referência femina da música brasileira, que, na verdade, só chegaria aos 100 anos em 2022
A cantora e compositora Dona Ivone Lara Foto: Divulgação
A cantora e compositora Dona Ivone Lara Foto: Divulgação

Do som que vem meio abafado da fita cassete, ouve-se a voz que anuncia: “‘Companheiro de Cristo’, homenagem a Dona Ivone Lara, de Zé Kéti.” E em seguida, acompanhado de um violão, o lendário autor de canções imortais como “A voz do morro” e “Diz que fui por aí” apresenta um samba de cunho religioso, no qual ele fala de Nossa Senhora, dos anjos e de Jesus, desdobrando-se em versos saborosos como “exijo e amo e sigo nossas tradições/ pra gente viver bem aqui precisa ter dois corações” e finalizando com um aviso: “com Deus estou chegando ao fim”.

“Companheiro de Deus” veio à tona nas últimas semanas, quando o neto de Dona Ivone Lara , o professor e cantor André Lara, se dedicou à tarefa de ouvir as inúmeras fitas que a avó, falecida em 2018, deixou aos cuidados da sua mãe. Essa composição de Zé Kéti é um dos tesouros que saem do baú da maior referência feminina do samba, cujo centenário começa a ser comemorado esta terça-feira, com o lançamento de um EP de inéditas e de um livro sobre seu clássico LP de 1981 “Sorriso negro” , além da realização de uma live do Teatro Rival Refit, às 19h, com as participações de André, Bruno Castro, Xande de Pilares, Dudu Nobre e Dandara Mariana.

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Nascida em 13 de abril de 1922, no bairro carioca de Botafogo, Dona Ivone viveu durante muito tempo como se fosse um ano mais velha do que realmente era. Isso, porque certa vez a sua mãe teve que mudar os registros de nascimento da menina para poder matriculá-la no colégio. Não tivesse sido a história corrigida por pesquisadores, a sambista estaria completando, sem dúvidas, os seus 100 anos em 2021 — o mesmo ano, aliás, do centenário de Zé Kéti .

— Nós vamos comemorar os dois aniversários, o formal e o informal — garante André Lara, de 39 anos, que quando garoto passou muitas tardes na casa da avó, no bairro de Inhaúma, na Zona Norte do Rio. — Eu a vi fazer músicas com Délcio Carvalho e outros parceiros, e quando os shows ou as gravações eram cedo, ela me levava junto.

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Segundo a filha de Zé Kéti e guardiã de sua obra, Geisa Ketti, “Companheiro de Cristo” é uma composição típica do pai da produção dos anos 1990, de músicas de cunho religioso e já “com um sentimento de despedida” (o sambista morreria em 1999, aos 78 anos).

— Essa música provavelmente estava em uma das fitas que ele trouxe quando voltou a morar no Rio de Janeiro e ele deve ter entregado a Dona Ivone Lara nessa época. Éramos vizinhos em Inhaúma e estávamos sempre juntos — relata Geisa, que gostaria de ver um dia a canção gravada por algum grande intérprete do samba, de preferência com uma saudação a Dona Ivone, que ela acredita ser a Nossa Senhora citada na letra.

Baú da Dona Ivone

Como compositora, a sambista ganha esta terça-feira a sua homenagem na forma de um EP, o quarto volume do “Baú da Dona Ivone” . Projeto do cavaquinista e parceiro Bruno Castro, o disco reúne sambas recentemente finalizados — seja a partir de melodias recuperadas de gravações de improvisos em shows, ou nascidas dos encontros que ele e André Lara tiveram com a compositora, já afastada dos palcos, em seus últimos anos de vida, no quintal de sua casa, no bairro carioca de Oswaldo Cruz.

— A gente ficava cantarolando, tinha dias em que Dona Ivone estava muito inspirada e eu gravava muita coisa. Fiquei com aquele material e fui fazendo as músicas aos poucos — conta Bruno.

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Desses encontros do cavaquinista com a cantora no quintal, saíram sambas como “15 anos após o centenário” (cantada por Dudu Nobre e Pretinho da Serrinha) e “Espaço para sonhar”, que ganhou interpretação do Fundo de Quintal. Cantada por Maria Rita, “Dois corações abrindo a manhã” surgiu, por sua vez, de um improviso da sambista que o músico gravou em um show em Curitiba, em 2005.

Não inédita do disco, “Nas escritas da vida” é a única que tem a voz de Dona Ivone Lara: era de um disco que ela e Bruno fizeram em conjunto. Ele tirou a sua voz e chamou Gilberto Gil para gravar a sua parte, em dueto póstumo.

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Bruno Castro aposta que a obra de grande dama do samba ainda sobreviverá por muitos anos:

— É impensável fazer uma roda e não tocar “Mas quem te disse que eu te esqueço”, “Enredo do meu samba”, “Alguém me avisou”, “Sonho meu”... Dona Ivone tem um punhado de músicas que atravessaram gerações. A minha filha canta, o meu pai canta, a minha avó cantava e o meu neto vai cantar. A função do Baú é aquecer essa história com novas vozes.