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Cultura Música

Jards Macalé se equilibra entre luz e trevas em seu primeiro disco de inéditas em 20 anos

'Besta fera' chega às plataformas na sexta e terá shows de lançamento em São Paulo, em março, e no Rio, em abril
Jards Macalé lança álbum 'Besta Fera' Foto: Divulgação/Leo Aversa
Jards Macalé lança álbum 'Besta Fera' Foto: Divulgação/Leo Aversa

RIO - Em seu poema “Aos vícios”, Gregório de Matos traça um diagnóstico sobre a Humanidade e, mais especificamente, o Brasil, em versos duros como “Todos somos ruins, todos perversos”. Jards Macalé musicou um fragmento deste poema. E de um desses versos cortantes do poeta (“Que a mudez canoniza bestas feras”) extraiu o nome da canção e também do álbum que lança agora. Sintetizado num verso do Boca do Inferno (como Gregório era chamado), “Besta fera”, primeiro disco de inéditas do compositor em mais de 20 anos, que será lançado pela Natura Musical nesta sexta-feira, é um álbum sobre os demônios deste tempo — que moram fora e dentro de nós.

— “A besta fera é um ser mítico do folclore português, uma criatura de traços indefinidos comedora de gente e que tem um rugido assustador”, lê em voz alta Macalé, na sala de sua casa, computador à frente aberto na Wikipedia: — A besta fera não tem cara. Pode ser qualquer um, depende do momento. Estamos na era da besta fera. Quem esfaquearia um cisne se não a besta fera? (ele se refere a um cisne do Parque Guinle que foi esfaqueado na semana passada.)

Na capa do disco — último trabalho do fotógrafo e seu amigo Cafi, morto recentemente —, a imagem que ilustra esse ser sem cara é a do próprio Macalé, com os óculos e o cabelo desenhando sua silhueta em meio à escuridão. O encarte inclui ainda fotos de Leo Aversa e ilustrações de Kiko Dinucci.

— Há anos musiquei um poema de Ezra Pound que batizei de “Luz”, agora musiquei outro dele, que chamei de “Trevas” — diz Macalé, que lança o álbum no Auditório Ibirapuera (São Paulo), em 23/3, e no Circo Voador (Rio), em 6/4. — Vivemos num momento de trevas, nunca ouvi tanto essa palavra. Mas a treva também é o desconhecido. Pode haver esperança, a luz do fim. Até porque não adianta virem todas as forças passadistas. A História com agá maiúsculo está do nosso lado.

Artista que construiu seus clássicos ao longo da década de 1970 (ou seja, na ditadura), Macalé não se furta a relacionar essa sujeira com a situação política brasileira.

— Estamos vivendo um momento pior do que aquele dos anos 1970. A violência de alguém elogiar hoje aquele período torna este momento atual pior — diz Macalé.

Mas ele faz questão de dizer que “Besta fera” vai muito além deste debate:

— Estão ali os vários Macalés que formam um Jards indivisível — resume, como quem reafirma o verso que escreveu em “Tempo e contratempo”: “O tempo não existe/ Essa que é a graça”.

Ode à volúpia da nova geração

“Besta fera”, portanto, equilibra podridão e esperança — nem sempre com divisão clara onde começa um e onde termina outro. O sangue é uma imagem constante (“Quero ver muito sangue nas veias abertas da América Latina”, explica Macalé, sorrindo, em referência ao livro de Eduardo Galeano). Em música e letra, tudo parece orbitar ideias de escuridão/sombra — o que toca na morte, tema de importância central no álbum, seja de forma dramática ou irreverente ou ambas, como “Longo caminho do sol”, que rima um alegre “laiá” com “bomba H”, num encontro de Nelson Cavaquinho com Adoniran Barbosa.

— Morreu tanto amigo meu desde o ano passado: Luiz Melodia, Nelson Pereira dos Santos, Cafi. Ao mesmo tempo tenho certeza de que, como canta Melodia, “ninguém morreu”. Dentro de mim ninguém morreu. A morte em “Besta fera” é a vida de “Besta fera”. Até porque é um trabalho muito vivo, vigoroso. Mas comentar a morte é necessário, afinal de contas não se morre todo dia. De qualquer forma, músicas como “Obstáculos” e “Peixe” falam de sobrevivência, de vontade de viver.

O vigor a que Macalé se refere tem origem na gênese do disco. Desde o início, ele queria trabalhar com um grupo de artistas mais jovens, formado por nomes como Thomas Harres e Pedro Dantas, que já estavam em sua banda, e outros como Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, do núcleo paulistano que redesenhou a sonoridade de Elza Soares em seus recentes “A mulher do fim do mundo” e “Deus é mulher”. Mesmo o fato de ele ter retomado a composição tem a ver com o que chamou de volúpia desta geração (“Era o que me faltava, tomar essa chamada mesmo”, explica) — entre seus parceiros ali estão nomes como Ava Rocha e Romulo. O resultado (a produção é assinada por Kiko e Thomas) é um álbum “bem sujo”, como define Macalé:

— O meu disco de 1972 era sujo, mas desta vez é proposital. Há uma beleza estranhamente agressiva em canções como “Obstáculos”. Mas ao mesmo tempo há coisas lindas como o arranjo que Thiago França fez em “Buraco da Consolação”, na linha Orquestra Tabajara, como eu pedi. Há as melodias inventivas criadas por Guilherme Held, que vêm de seu mestre Lanny Gordin mas que já é outra coisa. O que não podemos é ignorar que, como Tim Bernardes escreve, “o mundo está podre”.

Tim é parceiro de Macalé em “Buraco da Consolação”, que eles escreveram após se descobrirem fãs do álbum “Jamelão interpreta Lupicínio Rodrigues”, com acompanhamento da Tabajara.

— É alguém novinho, de 20 e poucos anos, falando isso. O disco é sujo porque o mundo está cada vez mais sujo.