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Lenine: 'Não fosse meu filho, eu ainda estaria cinza, sem estímulo para nada'

Cantor e compositor, que chegou a se afastar do violão durante a pandemia, faz duo com Bruno Giorgi, requisitado engenheiro de som, em 'Rizoma', o seu novo show
O cantor Lenine e o filho, o produtor Brunio Giorgi Foto: Jairo Goldflus / Divulgação
O cantor Lenine e o filho, o produtor Brunio Giorgi Foto: Jairo Goldflus / Divulgação

Para um, o Led Zeppelin é que é o tal. Para o outro, a grande banda de todos os tempos é o Radiohead — e nada há de mal nisso. Discordâncias são riquezas de que o cantor e compositor Lenine, de 62 anos, e o filho, o engenheiro de som e produtor Bruno Giorgi, de 33, se valeram para ficar mais próximos durante a pandemia de Covid-19. Com uma carreira musical que começou nos anos 1980 e frutificou nos 90, Lenine agora volta com Bruno ao formato de duo (com o qual ganhou notoriedade em 1993, ao lado do percussionista Marcos Suzano, no CD “Olho de peixe”). O resultado é “Rizoma”, show que eles estreiam dia 29 de janeiro, no Circo Voador, com abertura da Juliana Linhares .

A botânica, que Lenine aplica com afinco em seu sítio na Serra, junto a recém-descoberta apicultura (“fiz curso no Embrapa, fiquei fascinado”), se mistura à teoria filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari nas acepções possíveis do “Rizoma”. Mas as noções de raiz de que ele se utiliza parecem ser mais no sentido de família que no de qualquer outro – este é um projeto que ele veio montando com o filho ao longo de encontros semanais, sempre às quartas-feiras, no estúdio carioca O Quarto.

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O ambiente caseiro, lotado de equipamentos analógicos de gravação, é onde Bruno vem vivendo há alguns anos a sua rotina de requisitado engenheiro de gravação. Do pianista Amaro Freitas e o recentemente falecido arranjador Letieres Leite (de quem ele ficou muito próximo) ao cantor Tiago Iorc e a dupla Anavitória (ele gravou “Lisboa”, parceria das cantoras com Lenine, que ganhou este ano o Grammy Latino de melhor canção em língua portuguesa), todos passaram pelo Quarto. Lá, por sinal, Bruno fez toda a restauração de “O espírito do som”, a nova música de Cássia Eller (1962-2001), que estava numa gravação em fita cassete de 1985, quando ela tinha 22 anos.

— É por isso que só sobra a quarta-feira para mim! — reclama, maroto, o pai, que credita a esses encontros e ao apoio do filho o encerramento da depressão que o fez afastar-se por meses do seu violão. — Na verdade, não veio só a pandemia. Vieram, conjugados, pandemia e pandemônio. Foi muito difícil para mim, e ainda está sendo. O “Rizoma” surgiu a partir desse incômodo meu e da sorte de eu ter o Bruno junto, isso terminou sendo a minha sanidade. Não fosse isso, eu ainda estaria cinza, sem qualquer estímulo para fazer algo. Fiquei arredio e enclausurado. Teve momentos em que eu não via prazer nenhum em tocar, briguei com o meu instrumento. Fiz as pazes por causa do Bruno.

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O clima no Quarto, claro, também ajudou bastante.

— Tudo isso aqui [o estúdio] começou com o véio , com a gente comprando equipamento juntos para ele gravar a voz do “Labiata” ( álbum de Lenine de 2007 ) — conta Bruno, que produz os discos do pai desde “Chão”, de 2011.

O “véio" confirma:

— Eu sei do processo de cada máquina dessas! — diz Lenine, que carregou Bruno, ainda bem pequeno, em 1992, para acompanhar as gravações de “Olho de peixe”. — O que a gente tinha era os finais de semana. E ele ficava comigo, porque a Ana ( Barroso, sua mulher ) estava trabalhando com produção. E aí eu levava o Bruno para o estúdio, com um sacão de brinquedos.

Lenine e Bruno Giorgi em 2002 Foto: Cristina Granato / Divulgação
Lenine e Bruno Giorgi em 2002 Foto: Cristina Granato / Divulgação

“Rizoma” começou, segundo Lenine, antes da pandemia, como um projeto de voz e violão.

— A gente estava procurando a síntese, a alma da canção, e a partir dali trabalhar com o mínimo de elementos — conta ele que, daí em diante foi montando com o filho não exatamente canções, mas “monstros, protocoisas”, a partir de palavras e estímulos melódicos.

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A ideia de Lenine é que, em algum momento ao longo de 2022, os “monstros” se tornem as faixas de “Rizoma”, o futuro disco (algumas composições testadas nos shows, que correrão o Brasil depois de estrear no Rio).

No palco, a serviço de um repertório formado basicamente por recriações das canções do pai, Bruno cuida do baixo, bandolim, teclados, voz e samplers, deixando Lenine livre para cantar e tocar um violão esmerilhado com gosto renovado há algumas semanas em uma pequena turnê europeia de um duo com um de seus parceiros internacionais: o pianista holandês Martin Fondse, que nos shows também tocou um instrumento barroco, o vibrandoneon.

— Foi um ar profundo de criação, mas foi tudo de máscara. Aquilo confirmou o que eu faço, por que eu faço e a maneira como faço, caíram umas fichas muito poderosas. Me senti vivo num momento em que estava distante de tudo — diz Lenine, que só não fez mais shows com Fondse porque a eclosão da variante Ômicron da Covid-19 abreviou a turnê.

A volta aos palcos no Circo Voador da Lapa – onde ele se apresentou na tarde em que a lona foi inaugurada na Lapa, em 1982 – é a grande novidade de Lenine, que ao longo das quartas-feiras com o filho gravou participações em gravações do grupo Tuyo , das cantoras Mariana Aydar, Anastácia (em disco produzido por Zeca Baleiro) e Bia Bedran e do cantautor chileno Manoel García. Outra dessas participações rendeu música para a trilha da novela “Um lugar ao sol”: a de “Where do the children play?”, sucesso do cantor inglês Cat Stevens (hoje, Yusuf Islam), registrada à distância pelos músicos nas Girão Sessions de Fábio Girão, baixista de Lenine em seu primeiro LP, “Baque solto” (1983), com Lula Queiroga.

— Tem uma parte da produção do Cat Stevens que eu conheço profundamente, uns quatro ou cinco discos que eu ouvi muito e que formaram meu gosto musical — admite o cantor.

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Esperanças para 2022? Lenine acredita que, antes de mais nada, o Brasil tem contas a ajustar consigo mesmo — e com o atual presidente.

— Jamais imaginei que ao longo da minha vida que pudesse ver acontecer uma realidade tão medieval, tão tosca. Essa dissimulação descarada, essa atitude canalha perante a realidade, de ser dissimulado e promover a destruição. A gente tem que passar a limpo essa história. Aliás, só temos ele aí porque não passamos a limpo a História do Brasil — diz ele, com algum otimismo também diante das ameaças climáticas. — É o sinal dos tempos. Quinze anos atrás, quando já se estava falando sobre isso, a gente era chamado de alarmista. Agora eu acho que vai piorar, de uma maneira exponencial. Mas também acredito que, depois de um mergulho tão fundo, a gente deve subir para respirar.