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Os guitarristas Santana e Tom Morello lançam discos e soltam o verbo. O primeiro conta que só se vacinou para poder ver o neto

'Não estou aqui para dizer o que as pessoas têm que fazer', diz Santana. 'Blessings and miracles' e 'The Atlas Underground Fire' foram gravados durante a pandemia em colaboração com nomes de peso da música
Os guitarristas Carlos Santana (à esquerda) e Tom Morello Foto: Colagem de fotos de divulgação
Os guitarristas Carlos Santana (à esquerda) e Tom Morello Foto: Colagem de fotos de divulgação

A guitarra elétrica, tal qual se conhece, deve muito a esses dois senhores: Carlos Santana e Tom Morello. O primeiro, mexicano naturalizado americano, de 74 anos, irrompeu em 1969 no Festival de Woodstock com o grupo Santana, unindo blues, psicodelia e latinidades num composto poderoso e original. O outro, americano filho de queniano, de 57 anos, se notabilizou no começo dos anos 1990 à frente do Rage Against The Machine, banda que usou rock pesado e hip-hop como veículo para contundentes mensagens políticas — e Morello foi bem além dos modelos vigentes, com uma guitarra quase abstrata, que emulou muitas das sonoridades do rap.

Santana e Morello chegam esta sexta-feira ao streaming com discos que conceberam isoladamente na Califórnia durante a pandemia, mas que têm muito em comum. “Blessings and miracles” e “The Atlas Underground Fire” são obras colaborativas, nas quais eles reúnem nomes de peso da música (o astro do country e rock sulista Chris Stapleton, por sinal, está nos dois) em uma série de canções em que suas guitarras são importantes, mas nem de longe a única razão de ser.

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Músicos revolucionários, os dois guitarristas também têm visões de mundo muito particulares, que ficam evidentes nas entrevistas ao GLOBO. Ativista político, Tom Morello diz que, mesmo com a eleição do democrata Joe Biden à presidência, as agruras dos EUA estão longe do fim:

— As divisões em nosso país, que foram expostas ao longo desses últimos anos, ainda existem. Tanto elas quanto a eleição de Donald Trump ( em 2016 ) são sintomas de um problema maior: o de que uma grande parte da sociedade não tem suas necessidades atendidas ou sequer examinadas pelo poder estabelecido.

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Místico e naturalista — para quem “as drogas são criadas em laboratório e os remédios vêm da Mãe Natureza” —, Santana, por sua vez, não acredita na vacina contra a Covid-19. Ele conta que só se imunizou porque a filha estabeleceu esta condição para ele poder visitar o neto bebê. Mas não se considera um anti-vaxxer :

— Não estou aqui para dizer o que as pessoas têm que fazer. Este é o planeta da boa vontade. Sou como o vento e a água, também não quero que ninguém me diga o que tenho que fazer.

‘Pedi a Deus para tocar no rádio’

Vigésimo sexto álbum do Santana (o grupo com o qual o guitarrista lança seus discos), “Blessings and miracles” segue de perto o modelo de “Supernatural” (1999), obra em colaboração com grandes nomes do pop que o levou ao primeiro lugar das paradas de vários países. Inclusive, o cantor Rob Thomas (do grupo Matchbox Twenty , com quem Santana dividiu o mega hit “Smooth”) está de volta, 22 anos depois, com a canção “Move” — single do novo álbum, no qual ele e Santana se juntaram ao grupo American Authors.

— Me perguntaram se eu topava acrescentar a minha guitarra à canção em que Rob e eles estavam trabalhando. Quando ouvi, senti como se ela fosse uma grande onda. E, como surfista, eu não deixo passar essas ondas grandes — assegura Santana. — Daí, convenci-me de que tinha que mandar um pedido a Deus para que meus discos voltassem a tocar no rádio. E recebi várias sugestões de artistas com quem deveria colaborar. Existe uma inteligência divina orquestrando para que todos recebam uma avalanche de bênçãos e milagres. Basta abrir a mente e o coração para receber.

Muito da gravação de “Blessings and miracles” foi feito à distância, por Zoom. Mas não o dueto de Santana com Kirk Hammett (guitarrista do Metallica) e Marc Osegueda (vocalista do Death Angel), a pesada canção “America for sale”, que fala das desgraças impostas pelos colonizadores aos povos indígenas.

— Calhou de Kirk estar em San Rafael, que é onde o Metallica tem um quartel-general. Nós nos encontramos no estúdio, plugamos as guitarras, olhamos um na cara do outro e nos divertimos — resume Santana, para quem os tempos de Covid foram “ligeiramente inconvenientes” porque não pôde viajar, mas o deixaram mais “paciente e próximo de Deus”.

Em “Blessing and miracles”, além do vasto time de convidados (que vai de Kirk Hammett, Chris Stapleton e o vocalista do grupo Living Colour Corey Glover aos filhos de Santana, Salvador e Stella), o guitarrista teve a oportunidade de se reencontrar com um velho amigo: o cantor e tecladista Steve Winwood, para uma nova versão do clássico “A whiter shade of pale”, hit dos anos 1960 do grupo inglês Procol Harum:

— Esta é uma canção que desafia o tempo e a gravidade. Quis gravá-la com Steve porque amo sua voz e seu órgão. Nós a tornamos mais sensual, com chances de que ela tivesse apelo para brasileiros, gregos, africanos ou mexicanos. As melodias sempre abrem os corações das pessoas.

Protagonista de uma geração que mudou as cabeças do mundo a partir de Woodstock, Santana diz não se surpreender com estudos científicos recentes que recomendam o uso de compostos psicodélicos no tratamento de distúrbios da mente — algo que pode tirá-los enfim do rol de substâncias proibidas desde que os Estados Unidos declararam guerra às drogas.

— Não tenho seguido esses estudos. Apenas fiz e continuo fazendo uso dos psicodélicos. A única doença mental que existe vem de se investir emocionalmente no medo — acredita o músico. — Quando você ingere uma substância psicodélica sob acompanhamento, mescalina, ayahuasca, peiote, LSD ou psilocibina, você fica mais iluminado, porque tirou a máscara e aí pode revelar-se a si mesmo. O que existe de real são três coisas: luz, espírito e alma. E com os psicodélicos você descobre que eles nunca mudam, que você não pode se enganar quanto a eles. Por isso recomendo a todos o uso dos psicodélicos, sob supervisão. Que abram as portas da percepção e que o verdadeiro você apareça!

Por outro lado, Carlos Santana observa com muita desconfiança uma novidade que começa a promover mudanças significativas na música e em outras manifestações artísticas: o uso de inteligência artificial.

— É uma contradição em termos. “Inteligência” e “artificial” não combinam. É como se falar em um Woodstock branco e racista. Woodstock é um arco-íris multidimensional, ele não se resume apenas a uma ideologia — divaga Santana. — Artificial é falso, é criado em laboratório. Drogas são criadas em laboratório, remédios vêm da Mãe Natureza em um raio de luz até as plantas. Existem as drogas e existem os remédios, da mesma forma em que existem a música... e o que é artificial.

‘Foi uma forma de me manter vivo e são’

O álbum “The Atlas Undergound Fire” sucede “The Atlas Underground” (2018), no qual Tom Morello gravou faixas com um grupo de artistas tão heterogêneo quanto o superstar DJ Steve Aoki , o guitarrista de blues Gary Clark Jr., o produtor de dubstep Bassnectar e o rapper Vic Mensa.

— Este é um projeto com o qual eu, por um lado, tento forjar um novo gênero musical, com guitarras elétricas e rock’n’roll poderoso ao lado de batidas de dance music. É a minha insistência para que a guitarra não tenha apenas um passado, mas um futuro. Tenho a convicção de que ela é o maior instrumento já inventado pela Humanidade, mas é também um instrumento que se encastelou na tradição. Preocupo-me se a guitarra terá um lugar nos fones de ouvido e nos estádios e se vai ficar como o saxofone de jazz, relegado a um bar de hotel — discorre Morello. — Por outro lado, o “Atlas Underground” é uma maneira de me conectar com outros músicos e fazer colaborações, de descobrir a química musical que pode existir dentro de uma diversidade de artistas.

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Vivendo o isolamento da pandemia, o guitarrista viu , de repente, que era hora de fazer contatos — mesmo que remotos — com seus possíveis colaboradores, para experimentar com eles as canções que foi compondo em casa.

— Era só uma forma de me manter vivo e mentalmente são no meio de toda essa ansiedade, depressão e medo que vieram com a quarentena. E de encontrar conexões — diz Morello, que gravou “The Atlas Underground Fire” em seu estúdio no porão de casa da mãe de 98 anos em Los Angeles. — Quando vi, tinha ali um grupo globalmente diverso de penpals do rock. De Bruce Springsteen em Nova Jersey e Damian Marley na Jamaica a Chris Stapleton em Nashville, o Refused na Suécia e a DJ Sama’ Abdulhadi na Palestina.

A composição e a produção de “The Atlas Underground Fire” não tiveram muitos segredos para Tom Morello.

— Eu ficava gravando guitarras no meu celular e mandando por mensagens de texto para os colaboradores... Eram quase como bilhetes em garrafas jogados ao oceano para que ver o que vinha de volta! — conta ele, que se divertiu bastante na hora de registrar os riffs e solos definitivos das músicas. — Alguns fãs de rock e alguns guitarristas são de fato tradicionalistas. Eu, não. Aprecio o que foi feito com a guitarra, mas quero ver o que ainda se pode fazer. Nesse disco, compus e toquei alguns dos maiores riffs de toda a minha carreira e fiz os solos mais loucos! Isso é muito importante para mim, está no meu DNA. Eu cresci ouvindo discos de [Black] Sabbath, [Iron] Maiden, Dio, Kiss e AC/DC , mas não quero refazer os discos deles, quero fazer os discos dos Sabbaths, Maidens e Dios da geração seguinte.

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Por conta de sua postura pouco ortodoxa em relação à guitarra — e à música em geral —, Morello tem sempre que lidar com as mais absurdas cobranças dos fãs mais tradicionalistas. E, não raro, também com comentários racistas de quem acha, até, que negros não devem fazer rock.

— Deus abençoe as redes sociais, que permitem aos mais estúpidos entre os estúpidos chegarem ao topo! Mas ele também revela o racismo e os enganos sobre a história do rock. Não me surpreende o fato de que os negros toquem rock, o que me surpreende é pessoas acharem isso surpreendente — indigna-se.

Da mesma forma, o guitarrista (que em 2022 retoma a turnê com o Rage Against The Machine, interrompida ano passado) acredita que só mesmo a partir do questionamento das inúmeras mazelas infligidas hoje ao povo americano é que se poderá ter alguma mudança no futuro.

— Nós mal escapamos de um golpe fascista em nosso país, e as sementes estão aí. O único jeito de enfrentar isso é enfrentando. Tento escrever sobre isso, cantar sobre isso, gritar sobre isso... Algumas vezes você tem que atirar um tijolo, outras você tem que chegar com amor para as pessoas que divergem de você até chegar a um entendimento. É a minha esperança para o futuro — diz.

Um autoproclamado “internacionalista” (“as lutas dos meus camaradas me inspiram”, diz), Morello é bem conhecido por suas críticas a Jair Bolsonaro ( e ao seu antecessor, Michel Temer ):

— Sei que vocês enfrentam divisões parecidas com as nossas. E que há uma considerável parte da classe trabalhadora sendo ludibriada pelo seu líder com a mesma retórica fascista usada por Trump.