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Cultura Música

Pianista Amaro Freitas chama atenção na Europa com disco que mostra reinterpretação de gêneros pernambucanos

Comparado a nomes como Hermeto Pascoal, brasileiro lançou 'Rasif' pelo selo inglês Far Out
O pianista pernambucano Amaro Freitas na Casa da Música de Porto, Portugal Foto: Thiago Liberdade / Divulgação
O pianista pernambucano Amaro Freitas na Casa da Música de Porto, Portugal Foto: Thiago Liberdade / Divulgação

RIO — Árbitro definitivo de tudo o que é jazz no mundo, a revista “Downbeat” sacramentou em sua edição de janeiro de 2019: três estrelas e meia (de um total de cinco) para “Rasif”, disco no qual, segundo o crítico Philip Freeman, “acontece um monte de coisas e é todo ele empolgante”. Lançado em outubro pelo selo inglês Far Out (casa de brasileiros como Marcos Valle, Joyce, Azymuth e Hermeto Pascoal), o segundo álbum do pianista Amaro Freitas o conduziu em novembro, junto com seu trio, a uma turnê europeia que passou por palcos celebrados como o da Casa da Música (no Porto, Portugal) e o Ronnie Scott’s (templo do jazz em Londres).

— Ficava imaginando como seria isso, qual a estrutura que ia encontrar na Europa. Foi um sonho realizado. E a gente deu sorte porque estava frio, e as pessoas, não tendo outras coisas para fazer nas cidades, lotaram os shows — minimiza, em entrevista por telefone, o músico de 27 anos, que chegou a dar quatro bis em Munique, Alemanha, no Jazzclub Unterfahrt (ao fim, um emocionado alemão foi falar com Amaro que nunca tinha visto um show de jazz como aquele). — A alegria foi a música tê-lo tocado, nossa missão foi cumprida.

Vencedor em 2016 do Prêmio Instrumental do festival Mimo e presença ilustrada em “Lenine em trânsito”, mais recente disco do cantor conterrâneo (na música “Lua candeia”), Amaro Freitas surpreendeu muita gente com “Rasif”. A bossa e o samba-jazz que ainda figuravam em seu álbum de estreia com o trio, o também surpreendente “Sangue negro” (2016), foram embora. No lugar, entrou uma originalíssima reinterpretação do frevo, do maracatu, da ciranda, do baião e do coco sob a lente do jazz.

Diante do disco, as comparações dos críticos estrangeiros foram do óbvio Hermeto a músicos como pianista suíço Nik Bärtsch e o trio do pianista americano Matthew Shipp (de alguns desses músicos, por sinal, o pernambucano nunca tinha ouvido falar).

— Me dão um orgulho muito grande as comparações. A gente sabe que o Brasil é muito cultural, que tem muitas possibilidades, mas lá fora o país ainda é muito representado pela bossa nova e pelo samba-jazz — elabora. — Muitas pessoas me perguntam se eu acho que vão entender a minha música. Tem muita música da qual eu não entendo nada, mas eu gosto. É som além das palavras, música não tem classe social. E se eu quiser ser o cara da música universal? E se eu quiser seguir caminhos matemáticos, modernos, seja na clave do coco, na do baião ou em uma clave que ainda não existe?

Com um piano mais rítmico do que harmônico, Amaro seguiu com seus escudeiros Jean Elton (baixo acústico) e Hugo Medeiros (bateria) por “Rasif” — a palavra árabe que deu origem ao nome Recife — de forma a abarcar todo o ambiente de sua cidade: o mar, o rio Capibaribe, as construções antigas do Centro e toda a música que emana deles. A faixa-título é uma ciranda em compasso de sete tempos (“ficou faltando uma perninha”, brinca), “Trupé” traz a influência da poesia do sertão da cidade de Arcoverde e do samba de coco tocado no tablado de madeira (“prestei atenção na célula rítmica do coco e criei a melodia a partir da batida”). E “Mantra” é a música que deixa a todos desorientados com seus arabescos de melodias.

Emprego em call center

De família evangélica da periferia do Recife, Amaro teve sua vida mudada por um DVD do jazzista Chick Corea. Estudou piano sem ter piano, conseguiu uma bolsa no Conservatório e trabalhou em call center até poder se sustentar como pianista na noite. Olhando para trás, é categórico: “‘Sangue negro’ mudou a minha vida, lutei muito para gravá-lo”.

— Nesse disco, encontrei os músicos para dialogarem com a minha música, isso é precioso. Com eles foi que comecei a tocar as faixas novas, a amadurecê-las. Antes mesmo de a Far Out aparecer eu já tinha boa parte de “Rasif” pronta — conta. — O trabalho foi me envolvendo até a hora de gravar. Pensei em ter três participações especiais no disco, acabei tendo uma (a de Henrique Albino, no sopro) . As músicas mudaram de forma e estrutura e chegaram ao disco como um ser completo. “Rasif” passou um ano e quatro meses sendo pensado.

O ano de 2019 será de shows pelo Brasil e exterior, além da preparação de seu segundo álbum para a Far Out, que fechará uma trilogia. Cinco músicas já estão prontas.