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Tears For Fears: morte, #MeToo, Black Lives Matter e ascensão da direita inspiraram primeiro álbum da dupla em 17 anos

'Esse é um álbum com uma história a contar, não somente a busca por um single de sucesso', diz o baixista e vocalista Curt Smith sobre 'The tipping point'
Curt Smith (à esquerda) e Roland Orzabal, da dupla inglesa Tears For Fears Foto: Frank Ockenfels / Divulgação
Curt Smith (à esquerda) e Roland Orzabal, da dupla inglesa Tears For Fears Foto: Frank Ockenfels / Divulgação

Há 37 anos, a dupla inglesa Tears for Fears lançava o seu segundo álbum, “Songs from the big chair”. Era 1985, e foi impossível escapar das canções do disco: algumas delas, hits de sofisticado pop, da magnitude de “Everybody wants to rule the world”, “Head over heels” e “Shout”. O sucesso seguiu com o LP “The seeds of love” (1989), mas aí veio a separação em 1992 (Curt Smith seguiu solo, Roland Orzabal ficou com o nome da dupla), a volta 12 anos depois, alguns shows e poucos lançamentos. “The tipping point”, que chega esta sexta-feira ao streaming, é o primeiro álbum da dupla em 17 anos — tempo durante o qual muito aconteceu, e que deu num disco, segundo Curt, “com uma história a contar, e não somente a busca por um single de sucesso”.

— Infelizmente, Roland passou por um período bem difícil em que perdeu a mulher ( Caroline Orzabal morreu em 2017, depois de 35 anos casada com o músico ). E aí olhamos para o mundo em volta e lá estavam a pandemia, o movimento #MeToo, o Black Lives Matter e o crescimento político da direita, personificada por essas figuras masculinas com tendências ditatoriais — diz Curt Smith, de 60 anos, em entrevista por Zoom, de sua casa em Los Angeles. — “No small thing” fala da crise climática, da pandemia, de não poder ver as pessoas que se ama. “Tipping point” é Roland sobre Caroline. E “Break the man”, sobre o meu desejo de que haja uma maior igualdade para as mulheres. Tenho duas filhas e espero que tenham voz política. Não me surpreende que esse crescimento recente da direita seja 100% liderado por homens.

Segundo o baixista e cantor, não foi por acaso que o sucessor do álbum “Everybody loves a happy ending” demorou tanto para sair.

— Em 2004, tínhamos filhos pequenos, e muito do nosso tempo foi passado cuidando deles. Não queríamos de forma alguma ser pais ausentes e nem passar o tempo todo no estúdio ou na estrada. Então, fazíamos nossas turnês no verão, quando as crianças podiam nos acompanhar — conta Curt. — A ideia de voltar a compor junto só veio há uns sete, oito anos, e naquele ponto fazíamos parte de uma agência e uma gravadora que nos estimularam a trabalhar com novos compositores e produtores. Chegamos até a gravar um álbum, mas com o qual nenhum de nós ficou feliz. Não éramos nós, era só uma tentativa de soar modernos.

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Em 2019, eles deixaram a agência, compraram da gravadora os direitos sobre o disco e seguiram sozinhos.

— No fim do ano passado, eu e Roland marcamos um almoço para decidir se deveríamos continuar com o disco, e descobrimos que ambos queríamos. Havia umas cinco canções das quais gostávamos, embora não da forma com que haviam sido gravadas. Então cuidamos de regravá-las e de compor a outra metade do disco — explica. — No começo de 2020, fizemos a faixa de abertura, “No small thing”, só nós dois, com violões, na minha casa. Quando Roland voltou para a Inglaterra, veio a pandemia e não pudemos mais nos encontrar, então ficamos mandando pedaços de músicas um para outro e fazendo comentários e acertos. Em setembro agora, ele conseguiu voltar aos EUA, entramos em estúdio, e em dezembro o disco estava pronto.

Ano passado, no auge da pandemia, Curt Smith ganhou inesperada notoriedade quando um vídeo caseiro, em que cantava com a filha adolescente Diva a música “Mad world” (primeiro hit do Tears for Fears, que em 2022 completa 40 anos ), subitamente viralizou.

— Foi um choque, mas depois eu vi o sentido daquilo. Ele tocou as pessoas, primeiro porque era uma canção intitulada “mundo louco”, que tinha a ver com o que estávamos passando. Mas também porque eram um pai e uma filha cantando, essa conexão familiar era o que trazia conforto durante a pandemia — acredita Curt. — Acho que “Mad world” é tão pungente hoje quanto era há 40 anos, ainda existe esse desejo da população de voltar a algum tipo de sanidade. Na verdade, acho que a canção é até mais pungente hoje, do jeito que o mundo ficou por causa das redes sociais e da mídia.

Roland Orzabal (à esquerda) e Curt Smith, do Tears For Fears, em 1983 Foto: Divulgação
Roland Orzabal (à esquerda) e Curt Smith, do Tears For Fears, em 1983 Foto: Divulgação

Não é só a filha Diva que tem trabalhado com Curt Smith pela popularização do Tears for Fears entre as novas gerações. Ao longo dos anos 2000, Kanye West sampleou “Memories fade” na faixa “Coldest winter”, Drake pôs um trecho de “Ideas as opiates” em sua “Lust for life” e The Weeknd usou “Pale shelter” no hit “Secrets”.

— Achei interessante porque todos eles samplearam faixas de “The hurting” ( álbum de estreia da dupla, de 1983) , um disco que não fez tanto sucesso nos Estados Unidos. Eles reimaginaram as canções, da mesma forma que Michael Andrews e Gary Jules fizeram com “Mad world” ( na regravação para o filme “Donnie Darko” ) e a Lorde com “Everybody wants to rule the world” ( para o filme “Jogos vorazes” ). Essas últimas ficaram bem mais sombrias que as nossas gravações e, num certo sentido, bem mais afinadas com as letras — analisa o músico.

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Com sentimentos conflitantes em relação ao streaming — especialmente o Spotify (“o lado bom é que graças a ele hoje temos uma faixa de público muito maior do que jamais tivemos, o ruim é que não recebemos da gravadora o dinheiro que eles nos pagam”, diz), Curt Smith não vê a hora de voltar à estrada. E o Brasil (onde eles se apresentaram pela última vez em 2017, no Rock in Rio ) está na mira.

— O público aí é sempre espetacular, a parte dura é que é um dos lugares onde é complicado sair do hotel para dar uma volta. Os fãs são ávidos. Quando estivemos aí para o Rock in Rio, tive que sair pela cozinha para poder dar uma corridinha em Ipanema. Só não me reconheceram porque pus um chapéu — revela.