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Cultura Música

Aos 78, Elza Soares lança o seu primeiro disco de inéditas

Ao lado de nomes como Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, ela celebra o samba sujo de SP

“Não acredito em quem diz que não há música boa. Enquanto houver negro tomando porrada, gente trepando, vai ter”, diz Elza
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Divulgacão/Stéphane Munnier
“Não acredito em quem diz que não há música boa. Enquanto houver negro tomando porrada, gente trepando, vai ter”, diz Elza Foto: / Divulgacão/Stéphane Munnier

SÃO PAULO — Quinta faixa de 11, praticamente no meio de "A mulher do fim do mundo" ( Leia a crítica do disco ), “Pra fuder” guarda o núcleo incandescente do novo álbum de Elza Soares. Seus primeiros versos trazem o corpo em chamas de algo que parece ser uma entidade mítica, num apocalipse em fogo, lava e pele ardente.

“A mulher do fim do mundo é a que vai ficar. O fim do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do espiritismo existe uma entidade que se chama Iansã. Ela é o fogo, a lava. Eu me vejo como essa entidade maravilhosa se incendiando, mas viva, viva eternamente”

Elza Soares
sobre seu novo disco

Nas estrofes seguintes percebe-se que aquele corpo é de uma mulher, e o incêndio é sexo (“Unhas cravadas/ Em transe latejo/ Roupas jogadas no chão/ Pernas abertas/ Te prendo num beijo/ Sufoco e sofreguidão”), que explodem no verso-título, repetido percussivamente no canto de Elza, como um tamborim nervoso. Ou seja, ali se condensam destruição e gozo — duas conotações possíveis dentro da palavra “fuder”. E, consequentemente, morte e vida, Apocalipse e Gênesis. Uma síntese do que é o disco, desde seu nome até suas últimas palavras, cantadas à capella, baixinho, depois do fim da última faixa: “o que me fez morrer vai me fazer voltar”.

— A mulher do fim do mundo é a que vai ficar. O fim do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do espiritismo existe uma entidade que se chama Iansã. Ela é o fogo, a lava. Eu me vejo como essa entidade maravilhosa se incendiando, mas viva, viva eternamente — diz a cantora de 78 anos, explicando logo a seguir que não pensa na própria finitude quando se lança sobre o tema no disco. — A despedida que canto (“Daria a minha vida/ A quem me desse o tempo/ Soprava nesse vento/ A minha despedida”) não é uma despedida de verdade. É uma despedida das coisas ruins. Este disco ( o primeiro inteiramente de inéditas entre dezenas de álbuns em seis décadas de carreira ) é como se eu estivesse começando. My name is now (Meu nome é agora) . Para mim tudo é presente sempre, tudo é agora.

“A mulher do fim do mundo” começou a nascer quando Elza participou do show de lançamento de “Eslavosamba”, de Cacá Machado. Aquele trabalho, produzido pelo mesmo Guilherme Kastrup que agora assina a concepção, direção e produção do disco da cantora, reunia diversos artistas paulistanos do núcleo que vem propondo uma releitura do samba, suja, torta, visceral, caótica e potente. Nomes como Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Thiago França, Douglas Germano, Clima, e Romulo Fróes, todos presentes no disco de Elza, como músicos e compositores. Um grupo em torno do qual “A mulher do fim do mundo” — que originalmente seria um disco de releitura de clássicos da cantora — se ergue.

— Depois daquele show, conversando com o Kiko Dinucci, comentávamos como havia uma liga entre esse grupo e Elza. Há uma ligação com o jeito como ela vê o samba, de forma anárquica. O rock, o punk, coisas que a Elza tem demais — explica Kastrup. — Não é só ligação estética, é o olhar sobre a música como um todo.

— Sobre a vida — completa Elza.

“Há uma ligação com o jeito como ela vê o samba, de forma anárquica. O rock, o punk, coisas que a Elza tem demais”

Guilherme Kastrup
produtor do novo disco de Elza Soares

A trajetória da cantora está presente o tempo todo no disco — que será lançado sábado e domingo com show no Auditório Ibirapuera, em São Paulo (no Rio ainda não há data de lançamento). O próprio autorretrato que atravessa o disco, a ideia de superação e renascimento, já foi cantado por ela, de forma menos radical, em “Dura na queda”, de Chico Buarque (“Largou família/ Bebeu veneno/ E vai morrer de rir/ .../ Já apanhou à beça/ Mas para quem sabe olhar/ A flor também é/ Ferida aberta/ E não se vê chorar”), que fazia parte do disco “Do cóccix até o pescoço” (2001), produzido por José Miguel Wisnik, agora responsável por musicar os versos de Oswald de Andrade que abrem o novo disco, na faixa “Coração do mar”. E a sensualidade agressiva de “Pra fuder” ecoa a interpretação orgástica de “Beija-me”, canção de outro disco fundamental de Elza, “A bossa negra” (1960).

— Quando tenho uma música para cantar, busco uma história minha. Um exemplo é essa que diz “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim” ( “Maria da Vila Matilde”, um esculacho em forma de samba-de-breque-punk, da mulher contra o homem que a agride) . Na hora da gravação, criei uma fala, “essa mão cheia de dedos, esse dedo cheio de unhas sujas” que vem da minha experiência. Precisa ter vivido — diz Elza, que segue entrelaçando sua experiência com as faixas do disco: — “Comigo” é história de quem perdeu a mãe e a tem presente, penso na minha mãe e em mim como mãe, um filho meu cantando para mim. Perdi um filho há dois meses ( ele morreu após complicações de uma infecção urinária ). “Solto” tem um verso que adoro, “torto e tão certo”, poderia ter sido feito pro Mané ( Garrincha, com quem foi casada e teve uma relação apaixonada e conturbada ).

Elza quer o novo. E fica à vontade até no vocabulário contemporâneo da rua. “Firmeza?!” é talvez o exemplo mais nítido. Um diálogo num encontro fortuito na rua (espécie de atualização de “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola) entre ela e o autor Rodrigo Campos, a canção tem versos como “Pena que o corre é mil grau”. E não há estranhamento ou afetação quando Elza canta. Ou “Benedita”, em dueto com Celso Sim (um dos autores da música), personagem do submundo de travestis, crack, milícia (“Ela leva um cartucho na teta/ Ela abre a navalha na boca/ Ela tem uma dupla caceta”, diz a letra).

“Este disco já me deu uma nova vida, um novo olhar. Não consigo acreditar em quem diz que não há música boa. Enquanto houver negro tomando porrada, gente trepando, vai ter música sendo feita”

Elza Soares
cantora

— “Benedita” me assusta de tão forte — conta Elza, que tenta definir de onde vem seu interesse pelo que não conhece. — Não me sinto confortável num lugar só. Sei que não vou ter tempo de saber tudo, mas eu busco. Porque não sei nada, tudo me faz aprender mais um bocadinho. Este disco já me deu uma nova vida, um novo olhar. Não consigo acreditar em quem diz que não há música boa. Enquanto houver negro tomando porrada, gente trepando, vai ter música sendo feita — afirma Elza, que no início do processo de concepção do disco, disse a Kastrup que queria cantar sobre “sexo e negritude”.

Seu desconforto de estar parada se reflete numa imagem presente em “Coação do mar” (a tal dos versos de Oswald e melodia de Wisnik): “É o navio humano, quente, negreiro do mangue/ É o navio humano, quente, guerreiro do mangue”.

— Eu sou esse navio negreiro sem rumo — diz, para depois de uma breve pausa repetir, ressaltando: — Sem rumo.

* Enviado a São Paulo

Elza Soares