Cultura Música

Artigo: Naná Vasconcelos comanda o público em meio ao apagão de 2009

Batman Zavareze relembra apresentação do percussionista no Multiplicidade

Naná Vasconcelos no carnaval de Recife em 2010
Foto: Arquivo
Naná Vasconcelos no carnaval de Recife em 2010 Foto: Arquivo

RIO - No dia 10 de novembro de 2009, aconteceria no Festival Multiplicidade uma grande aposta entre os espetáculos do Teatro Oi Casa Grande, que era um encontro inédito do percussionista Naná Vasconcelos com o artista plástico Raul Mourão, envolvendo colaborações especiais, como o DJ Dolores e uma banda pernambucana que misturava referências de maracatu, frevo e eletrônico.

O Raul, sempre inquieto, foi provocado e propôs a instalação de duas grandes telas, suspensas uns seis metros acima da banda, que dialogavam como um cinema expandido diante da plateia de mil pessoas que abarrotava o teatro. Era uma cena plasticamente bem impactante, com parceria de vídeos de Leo Domingues e iluminação de Maneco Quinderé.

Certamente nesse dia vivi o momento mais tenso e inusitado de toda a história do festival. Ou melhor, de minha vida. O show começou bem, tudo lindo, mas depois de 20 minutos as luzes se apagaram. Foi tão repentino e inesperado que eu me perguntei se aquilo era parte do espetáculo. Achava que Naná estava aprontando algo, era a cara dele. Demorou até entendermos exatamente o que estava acontecendo.

Primeiro, veio a informação de que o bairro do Leblon estava sem luz, depois falaram que era todo o Rio de Janeiro e, finalmente, soubemos que estávamos no meio de um “apagão” em todo o território brasileiro e parte do Paraguai.

O apagão atingiu em cheio a performance chamada “Blind date”. Houve uma certa reação de pânico por parte da nossa equipe, tensa com aquela pequena multidão às cegas no teatro. Os bombeiros ficaram desorientados e afoitos na missão de evacuar o teatro. Completamente atordoado, ainda acreditava que Naná poderia me acalmar.

A salvação estava no palco com Naná reinando absoluto. Em momento algum, ele parou de criar sons. Quando consegui chegar até o palco conduzido pelo produtor Geraldinho Magalhães — pai desse encontro às escuras —, vi que Naná continuava conduzindo a plateia com os instrumentos percussivos — berimbau, atabaques, pandeiros, chocalhos e voz.

“Naná fez o que sempre tive desejo de fazer no festival: desgarrar a imagem do som nas performances sem perder nosso DNA. Ele embaralhou tudo quando fez uma audição no cenário mais primitivo possível, a escuridão”

Batman Zavareze
Curador do Festival Multiplicidade

Ele avançava e recuava no palco, criando uma sonoridade com os pés que fez com que o público desviasse a atenção do que estava acontecendo lá fora e transformando o teatro numa floresta. Naná me chamava nesse momento e dizia: “Zavareze, cadê a tecnologia?”. Ele se divertia tirando onda comigo e me acalmava sem enxergarmos um ao outro.

Passaram-se uns 40 minutos e nada de a luz voltar. Quando percebemos que a situação iria se estender demais, iniciamos um movimento para fazer com que aquela experiência terminasse na rua, como uma espécie de cortejo do carnaval pernambucano. Na verdade, trocamos o palco pela rua porque ninguém parava de interagir com aquela mágica experiência, coisas que ele sabia produzir com os sons da vida, em qualquer situação. Ninguém conseguia ir para suas casas, não tinha fim aquela experiência que havia migrado para as ruas.

É engraçado que, pela dificuldade de definir a data para os ensaios prévios, por conta da agenda internacional do Naná, a apresentação ficou denominada de “Blind date” (traduzindo literalmente: “Encontro às cegas”). Mais uma premonição dele, que provavelmente é, dentre os artistas brasileiros, um dos que têm a intuição mais apurada nas suas criações. Ele tirou proveito da situação, do início ao fim, nos colocou numa condição de desespero e nos levou ao gozo total.

Naná fez o que sempre tive desejo de fazer no festival: desgarrar a imagem do som nas performances sem perder nosso DNA. Ele embaralhou tudo quando fez uma audição no cenário mais primitivo possível, a escuridão, criando uma viagem sensorial numa outra dimensão. Ano passado, ainda com esse espetáculo ecoando dentro de mim, tentei motivá-lo em fazer a versão 2.0 do “Blind date”, mas ele realmente oscilava entre melhoras e recaídas dessa devastadora doença. Naná, ao final de tudo, disse algo que muito me marcou: “Melhor que esta noite não termine nunca...

*Diretor e curador do Festival Multiplicidade