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Cultura Música

Buchecha: 'Cartola veio da favela. Por que o funk não pode cantar o amor?'

Com show prestes a estrear e filme e peça sobre sua história com o parceiro Claudinho em preparação, artista conversa sobre passado e futuro do funk e racismo brasileiro
Buchecha na casa no Leblon onde estreia show esta quarta: ‘A gente era servente de obra e de repente estava ali dividindo palco com Só Pra Contrariar’, lembra cantor Foto: MARCELO THEOBALD / O Globo
Buchecha na casa no Leblon onde estreia show esta quarta: ‘A gente era servente de obra e de repente estava ali dividindo palco com Só Pra Contrariar’, lembra cantor Foto: MARCELO THEOBALD / O Globo

RIO - O adolescente Claucirlei Jovêncio tocava num grupo de pagode no Salgueiro, em São Gonçalo, com relativo sucesso local (“a gente tinha uma moralzinha na favela”). Mas o dia em que Cidinho e Doca (“Rap da felicidade”) se apresentaram em sua área, os rumos de sua carreira artística mudaram. Um tanto pelo que viu no palco, mas sobretudo pelo que viu fora dele:

— As meninas largaram do nosso braço e foram gritar pra Cidinho e Doca: “lindo, tesão, bonito e gostosão” — lembra Claucirlei, que se tornaria nacionalmente conhecido como Buchecha. — Quando olhei pros moleques... Sem sacanagem, a gente é feio, mas com todo o respeito... Pensei: “Vou ser funkeiro”.

Quase três décadas depois, Buchecha acumula histórias e sucessos, sobretudo com o parceiro Claudinho (morto em 2002, num acidente de carro). Os sucessos (“Rap do Salgueiro”, “Nosso sonho”, “Conquista”...) e histórias serão lembrados em diferentes frentes.

O show “Bagunça do Buchecha” estreia quarta-feira no Dözen Art’ Bar, no Leblon. Há ainda no forno um filme (“Nosso sonho”, que estreia em 2020) e um musical (que chega aos palcos ainda este ano) sobre a trajetória da dupla.

De São Gonçalo pro Leblon...

Quando eu e Claudinho subimos ao palco pela primeira vez no Clube Mauá de São Gonçalo, em 1992, e ganhamos o festival, a gente não tinha dimensão do que seria. A gente era servente de obra e de repente estava ali dividindo palco com Só Pra Contrariar. Era algo muito inédito pro funk, que antes ficava só na sua cerquinha. Em 1995 que estouramos, quando vencemos de novo o festival com o “Rap do Salgueiro”, que tocou na rádio. Começamos a fazer shows com DJ e violão e bateria. O pessoal reclamava, dizia que não era funk.

“Fui no enterro de vários amigos que se tornaram traficantes. Sou traficante por isso? É um acinte a sociedade querer condenar um cidadão por isso.”

Buchecha
Cantor, sobre prisão de Rennan da Penha

Como surgiu a ideia do violão e desse viés mais pop?

A gente percebeu que pra sair do gueto tinha que fazer diferente. Fui o primeiro MC a pegar o dicionário, virou meu livro de cabeceira. Estudei no CIEP, o famoso Brizolão, até a quarta série só. O vocabulário do funk era pobre. Então eu ia procurar sinônimos. Estava fazendo uma música (“Nosso sonho”) que falava algo como “se o destino permitir, autorizar”, mas queria outra palavra. Achei “adjudicar”, um termo jurídico. Os advogados adoram. O sucesso veio desse conjunto: o linguajar diferente, a banda, as melodias...

E teve a dança.

A gente não sabia dançar. Aí inventei o break voador, em cima das coisas que a gente fazia na favela: rodar pião, soltar cafifa (pipa) , bola de gude (lista, enquanto mostra os passos) . E teve o passo do Dino, o mais famoso, que veio da (série) “Família Dinossauro”. A música falava “olha, eu te amo”, nada a ver com a dança. Mas pegou criança, idoso, o Pedro Bial abriu o “Fantástico” com essa dança uma vez.

Por que suas letras passavam longe do cotidiano da favela?

A letra de “Rap da felicidade” é linda. Mas é pra separar, tipo “povo preto não tem vez com povo branco”. Mesmo vivendo a mesma realidade, a gente queria falar de outra forma. Se existe o mal, existe o bem, vamos aproveitar o bem. Todo o sofrimento que a gente passou, fome, tiroteio, levar tapa na cara da polícia, a gente quis canalizar pro bem, não pro revanchismo. Mostrar pros nossos irmãos que dá pra vencer.

A gente identifica nossa irmandade, mas Cartola veio da favela como eu e cantava “As rosas não falam”. Porque no funk a gente tem que ficar segregado e não pode cantar o amor, só protestar? Tem que ter isso, mas a gente vai fazer outra parada. Ponta direita e ponta esquerda, pra não ficar capenga.

Mas o racismo não o revolta?

Claro. Outro dia entrei num elevador aqui no Leblon, uma guria saiu. Mas nunca falo dessas coisas porque sempre procurei ser forte, no sentido de não levar isso comigo. O negro no Brasil, o pobre, tem que ser mais valente do que o resto. É justo buscar seu direito, protestar, mas isso não pode ficar guardado no seu coração, porque senão você vai tratar alguém mal. Pessoas feridas ferem outras, pessoas curadas curam outras. O que falo pro meu povo é que a gente é maior do que isso.

“'Tem muita letra fazendo apologia à droga, ao sexo desenfreado, estão banalizando muito as mulheres. Não cabe mais isso, elas já foram muito vilipendiadas ao longo da história. Mas o ritmo é legal'”

Buchecha
Cantor, sobre funk 150bpm

Como vê o funk 150bpm, que hoje domina o gênero?

Vejo com bons olhos todo mundo que sai da mesmice. Todo mundo da tradição torcia o nariz: “isso não é funk, é música latina”. Hoje é uma realidade. Algumas coisas eu acho legais, outras não. Tem muita letra fazendo apologia à droga, ao sexo desenfreado, estão banalizando muito as mulheres. Não cabe mais isso, elas já foram muito vilipendiadas ao longo da história. Mas o ritmo é legal, eu toparia fazer algo no 150, com uma letra bacana.

Nunca aceitei fazer apologia à coisa errada. Minha mãe criou oito filhos sozinha, e criou muito bem. Uma vez, com uns 7 anos, estava na mercearia com minha irmã, a caneta de lá caiu, eu peguei e botei no bolso. Minha irmã falou pra minha mãe. Fui apanhando de casa até a mercearia, ela me segurou pela orelha com uma mão e foi batendo com a outra. Cheguei lá, ela mandou eu pedir desculpa ao dono. Eu pedi e ele falou: “não precisava, é só uma caneta”. Ela falou: “Hoje é uma caneta, amanhã é um pão, depois tá invadindo a casa dos outros”. Esses valores ficaram dentro de mim.

Como vê a prisão de Rennan da Penha, grande nome do funk 150bpm, acusado de envolvimento com o tráfico?

Não conheço a investigação, mas algo que posso falar com tranquilidade é que não tem como o cara que é favelado não ter contato com o tráfico. Fui no enterro de vários amigos que se tornaram traficantes. Sou traficante por isso? É um acinte a sociedade querer condenar um cidadão por isso.

Era pra ter escola, trabalho, mas o único representante do governo que chega lá é a polícia, que chega daquele jeito. Você vê crianças morrendo dentro de sala de aula. Isso é absurdo. Querem combater o tráfico de maneira burra. Qual engenharia que tem na comunidade pro cara fazer fuzil? E a droga que tá dentro da comunidade, como entrou? O bagulho sobe, não desce.