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Cultura Música

Canções recusadas por Roberto Carlos formam playlist que vai de Tom Jobim a Cartola

Música composta por Jards Macalé nos anos 1970 para o Rei, e também rejeitada, ‘Sem essa’ vira faixa do no novo álbum de Toni Platão

Detalhes. Roberto Carlos se apresenta em 1966 no stand da Rio Gráfica Editora, na Feira de São Cristóvão; à esquerda, a capa do disco que RC lançou em 1969, homenageada na capa
Foto:
Arquivo O Globo
/ Agência O Globo
Detalhes. Roberto Carlos se apresenta em 1966 no stand da Rio Gráfica Editora, na Feira de São Cristóvão; à esquerda, a capa do disco que RC lançou em 1969, homenageada na capa Foto: Arquivo O Globo / Agência O Globo

RIO — Roberto Carlos ouve as canções feitas para ele. Desde seus primeiros registros, que completam 60 anos neste 2020 repleto de emoções, muitos sucessos do rádio e da televisão foram criados para o Rei que, por motivos diversos, preferiu não gravá-los. Talvez seja mais fácil citar quem não compôs para Roberto, como Edu Lobo, do que quem compôs. Quase todos os medalhões da MPB um dia criaram para serem ouvidos na voz dele. Poucos conseguiram. RC sempre cantou lindas canções, de outros autores ou feitas em parceria com o irmão camarada Erasmo Carlos. Porém não são menos belas aquelas que a majestade não gravou — a ponto de montarmos uma playlist com sugestões de artistas e fãs com músicas que gostariam de ouvir na voz de Roberto Carlos .

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Uma dessas pérolas foi redescoberta por Toni Platão. Na pesquisa de músicas para um álbum recém gravado, encontrou “Sem essa”, feita em 1969 por Duda e Jards Macalé. Num encontro no Jardim Botânico, Jards contou para Toni que tinha feito a canção para Roberto, mas ele não gravou. “Sem essa”, registrada por Macalé em 1970, tem versos como “mesmo assim fiquei pensando / Que a gente podia viajar / E fazer um álbum de fotografias / Pra depois queimar”, que, para Platão, podem indicar o motivo da recusa.

— É uma canção de amor desesperado, que é belo mas raivoso. A ideia do fogo pode assustar mas também há muitas negativas como “não é nada disso”. Será por isso? Essa canção ficou esquecida por 50 anos, um lado B do Macalé. Falei com Jards que ia gravar e ele disse: claro!

Será o 'não'?

Um detalhe pode ser a chave do sim ou do não. No caso de Nelson Motta e Lulu Santos foi a palavra “não” mesmo. “Certas coisas” (1984), um dos maiores hits da dupla, foi especialmente traçada para Roberto. Com vocês, Nelson Motta, o letrista.

— Me disseram na época que ele encasquetou com a primeira palavra da letra, que começa: “Não existiria som se não houvesse o silêncio / Não haveria luz se não fosse a escuridão”. O Roberto não quis mas, felizmente, o Milton Nascimento gravou essa canção — comenta Motta. — Todo compositor brasileiro quer um dia ser cantado por Roberto Carlos. Tudo na voz dele fica bonito, é um cantor maravilhoso. Eu e Lulu tivemos a honra de vê-lo gravar depois “Como uma onda”, Isso satisfez nossa vontade.

O historiador Paulo Cesar Araújo, autor da biografia não autorizada “Roberto Carlos em detalhes” (lançada em dezembro de 2006 e recolhida das lojas quatro meses depois), conta que o Rei sabe jogar com a conveniência. Quando contei a ele, por telefone, a história de “Certas coisas”, Araújo me perguntou: “Chico, como começa “Detalhes”? E eu: “Não adianta nem tentar, me esquecer...”

Araújo diz que muitas vezes RC simplesmente não gosta da canção, ou ela não cabe no conceito do momento. Por isso, pode preferir alimentar o folclore que ronda sua personalidade a dar uma desagradável negativa a um querido colega de profissão.

De deus ao blues

“Se eu quiser falar com Deus” (1980) é uma das obras mais aclamadas da carreira de Gilberto Gil. Trata da fé, da necessidade de despojamento material para o homem alcançar uma conexão divina. Tudo a ver com o discurso de quem que já cantou Jesus Cristo e Nossa Senhora. Mas um verso específico pode ter travado o canto do Rei: “Comer o pão que o diabo amassou”. Para quem ficou muitos anos sem falar a palavra “inferno”, cantar o nome do dono de tal lugar pode ser uma heresia.

Com universo místico parecido com o de Gil, Zé Ramalho compôs “Eternas ondas” para entrar num disco de Roberto. Com oito versos, a letra é quase uma oração cheia de mensagens cifradas. Roberto não quis, e quem se deu bem foi Raimundo Fagner, que não só gravou como usou a música para batizar seu álbum de 1980. Foi um dos maiores sucessos daquele ano.

O mesmo Fagner que, ainda jovem, em 1975, teve sua “Mucuripe”, parceria com Belchior, gravada pelo Rei. Essa sorte não chegou a tempo para Sergio Sampaio (1947-1994). O compositor de Cachoeiro do Itapemirim passou a carreira sonhando em ouvir suas letras e melodias na voz do conterrâneo mais ilustre. Já desiludido, no fim da vida, fez “Meu pobre blues”, em que trata do desejo frustrado.

Mas afinal, Roberto canta aquilo em que acredita? Quem responde é o biógrafo Paulo Cesar Araújo:

— Sim. Se ele não concorda com a ideia ele não grava. Roberto não se vê como um porta-voz da mensagem das palavras de outros, que nem grandes intérpretes como Nara Leão e Elis Regina. Especialmente em temas mais filosóficos, místicos. A única pessoa que colocou Deus na boca de Roberto foi Guilherme Arantes, com a música “Toda vã filosofia.” Mas só porque o Guilherme conseguiu dizer exatamente o que Roberto pensava sobre o tema.

Desejos da majestade

Como um editor que busca variedade de assuntos para sua publicação, Roberto se preocupa com os temas tratados nos discos. Por isso, escolhe as canções de forma a moldar um discurso amplo que de alguma maneira reflita a sociedade de cada época. Foi assim que pinçou “Moço velho” (1973), de Silvio Cesar, cantando a passagem do tempo de uma forma original, e ainda “A namorada”, de Carlos Cola, que abordava uma relação interracial, tema ainda não tratado nos idos de 1971.

Foi justamente nessa busca por abordagens novidadeiras que Roberto recusou “Você”, de Tim Maia, por ser uma canção que tratava de amor de uma forma muito recorrente, e encomendou uma letra mais agressiva, que mostrava uma atitude rebelde compatível com a juventude de 1969. Nasceu o soul “Não vou ficar”, o primeiro sucesso de Tim como compositor.

Doddy Sirena, empresário de Roberto, conta que há décadas foi procurado pelo então diretor do Fantástico, Luiz Nascimento, sugerindo que Roberto interpretasse “As rosas não falam” especialmente para o programa. A produção tinha encontrado uma entrevista antiga de Cartola e o poeta manifestava o desejo de ouvir a sua canção na voz do então “jovem cantor”. Roberto gentilmente agradeceu ao convite. Alegou que as rosas falam sim, e ele conversa com elas no jardim de casa.

O rei mexeu com o sentimento e a inspiração da suprema corte musical brasileira. Tom Jobim compôs “Angela” para Roberto Carlos, que não gravou. Vinicius de Moraes fez “Anoiteceu”, em parceria com Francis Hime, mas levou um não. Chico Buarque e Dominguinhos criaram “Certas palavras” mas a melodia não fluiu para Roberto. Não é fácil agradar a uma majestade.

*Especial para O GLOBO