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Cultura Música

Chico Buarque canta mal? Professores de canto respondem

Tony Tornado levantou a polêmica ao tratar com ironia a voz do cantor durante programa de televisão
Chico Buarque Foto: Leo Aversa / 14/12/2017
Chico Buarque Foto: Leo Aversa / 14/12/2017

RIO — Tony Tornado agitou a final do "Popstar", neste domingo , ao comentar a versão de Totia Meireles para "Gota D'Água", clássico de Chico Buarque. Antes de dar a sua nota, o ator de 89 anos disparou: "Para ela, cantar pior que o Chico Buarque é impossível". A reação na plateia, e na internet, foi imediata. Sua colega de palco Alinne Rosa demonstrou incredulidade com um singelo "Oxe!", enquanto nas redes sociais os fãs se dividiram entre defender o cantor ou lembrar que o próprio Chico já ironizou sua "voz chinfrim" até em letra de música. Para não deixar dúvidas, fomos perguntar para professores de canto: afinal, Chico Buarque canta mal?

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— Não. Musicalidade e personalidade vocal são os principais atributos de um  cantor — defende a fonoaudióloga e preparadora vocal Valéria Leal. — Chico canta mal pra quem gosta de ressonância equilibrada, ampla tessitura no canto, voz potente, melismas, drives, vibrato e groove na voz. O canto popular permite uma gama variável de expressões vocais. Valem nesse quesito a originalidade, o discurso e a empatia que se cria com o público. O resto é apenas gosto pessoal.

Também preparadora vocal e fonoaudióloga, Alza Alves pensa de forma parecida.

— Podemos até apontar um trecho de uma canção do passado em que Chico jogou a nota “na trave”, ou seja, desafinou, e perceber uma voz com característica levemente anasalada. — diz ela, que trabalhou com Silva, Serjão Loroza, Gabriel O Pensador, entre outros. — Mas a verdade, pelo menos para mim, é que na obra de Chico é quase impossível dissociar suas composições do seu próprio jeito de cantar, que transcende questões técnicas. A beleza está na voz a serviço da canção e da métrica impecável da poesia cantada. “Samba de um Grande Amor” é um dos vários exemplos.

Para Felipe Abreu, professor de canto e preparador vocal de Frejat, Roberta Sá, Simone, entre outros, "ninguém pode dizer que a voz do Chico é um exemplo de beleza tímbrica", mas...

— Daí a dizer que ele canta mal vai enorme distância. Ele é suficientemente competente na afinação, por exemplo. Quando a gente quer ter certeza sobre quais são as notas corretas de uma das complexas melodias compostas pelo Chico, é melhor ouvir ele mesmo cantando do que 90% dos cantores que gravam suas músicas — afirma. — No Brasil, ficamos mal acostumados com tantos compositores que também são grandes cantores, de Caymmi e Dolores Duran a Caetano, Gil, Milton, Djavan, Paulinho da Viola etc. Chico não está nesse mesmo pódio, claro. Mas sua voz  está há tanto tempo com os brasileiros, nas alegrias, tristezas, vitórias e derrotas, que escutá-la é muito mais que uma experiência estética. Se a história do Brasil dos últimos 50 anos fosse uma voz, seria a voz do Chico.

João Gilberto

O preparador vocal Ricardo Góes lembra que "diferente dos outros instrumentos, a voz é extremamente moldável" e que as inclinações estéticas e influências de cada artista ajudam a "entender melhor as várias escolhas que o cantor faz, consciente ou inconscientemente, ao longo do seu processo de construção."

— Chico, assim como toda a sua geração de cantores e compositores, teve João Gilberto como referência de intérprete, com seu canto preciso, econômico, focado na sutileza do som da palavra, e na riqueza musical da língua portuguesa — destaca Góes. — Isso, somado à sofisticação melódica e harmônica da bossa nova e de toda a tradição musical das fontes onde ela bebe, impõe ao cantor um enorme rigor no controle da emissão vocal e da afinação.

Góes lembra que Chico, mesmo tendo como base a canção e o samba, flertou com diversos estilos ao longo da carreira, como blues, salsa, rock, bolero, etc. Destaca também a personalidade tímida do artista como mais uma característica definidora. Além disso, avalia que "no canto de Chico a palavra é uma prioridade, assim como nas suas composições", ecoando argumento de Alza Alves.

— Como poeta e cronista a palavra norteia a forma com que ele canta, às vezes mais despojadamente mas sempre expressivo na medida justa que a canção pede. Com o amadurecimento, Chico foi aumentando a complexidade das suas composições, elaborando melodias e harmonias vertiginosas na contramão do seu canto um pouco falado, e do desgaste natural da voz que subtrai dela cor, brilho e precisão, acentuando o som mais nasalado. Acho que dizer que Chico canta mal é reduzir a arte do intérprete, descer a um patamar menor, onde quesitos vocais não tão caros à música brasileira quanto a de culturas dominantes como a americana são supervalorizados. Daí o próprio João Gilberto, marco mais importante de afirmação estética do canto brasileiro, ter sido considerado por muitos a antítese do cantor.

Na coluna que assinava no jornal O GLOBO, a cantora Zelia Duncan também já tratou do caso . No texto, de janeiro de 2018, a cantora defende que "'cantar bem 'é subjetivo" e pergunta "o que é cantar bem? Ginástica? Malabarismo? Extensão?", para logo em seguida defender que muitos "atletas vocais nada nos entregam (...). Impressionam e têm lá seu valor, mas se botarmos uma lentezinha, nem são tão musicais, tamanha a preocupação com os saltos mortais, que podem matar é a canção".

"Voltando ao nosso belo cantor, quem pode negar que certas canções suas não são ainda mais imbatíveis na sua própria voz? Seu jeito explicadinho com as letras, seus aparentemente distraídos contracantos? Quem nunca se emocionou com aquele vibratinho apressado no final das palavras? Não me obriguem a falar dos olhos verdes, que piscam devagar e o quase sorriso ao terminar uma canção, isso não é música... é doce sedução!"