Cultura Música

'Começaram a marcar perfis da PF e do Carlos Bolsonaro', diz Fred Zeroquatro sobre capa de novo disco do Mundo Livre S/A

Lançado nesta quinta (20), nono álbum da banda traz referências ao 'pandemônio de notícias' da pandemia e nova versão para 'Musa da Ilha Grande', criticadas por muitas mulheres: 'Não pode mais secar uma pessoa saindo da água?'
O grupo Mundo Livre S/A Foto: Tiago Calazans / Divulgação
O grupo Mundo Livre S/A Foto: Tiago Calazans / Divulgação

Nono álbum de uma carreira fonográfica de quase 28 anos, “Walking dead folia”, deu o que falar antes mesmo de ser lançado. Anteontem, o Mundo Livre S/A lançou a arte da capa do disco na internet: na ilustração de Wendell Araújo, entre figuras como a de um Adolf Hitler com faixa verde-amarela, foliões carregam num caixão um palhaço morto vestido com uma camiseta da seleção brasileira onde se lê “Sorria, você teve alta!”. A publicação, muito replicada, bateu recordes no perfil da banda, com inúmeras mensagens de solidariedade e apoio.

— Mas, nas últimas horas, comecei a notar que as postagens são mais de bolsonaristas, marcando perfis da Polícia Federal, do [ vereador ] Carlos Bolsonaro... e do [ secretário especial de Cultura ] Mario Frias. (risos) — comenta Fred Zeroquatro, vocalista, compositor, fundador e líder da banda.— Você sabe que está furando a bolha quando começa a aparecer esse tipo de coisa!

Adam McKay: 'Bolsonaro diria para as pessoas não olharem para cima', diz diretor de 'Não olhe para cima'

Capa do álbum "Walking dead folia", do grupo Mundo Livre S/A Foto: Reprodução
Capa do álbum "Walking dead folia", do grupo Mundo Livre S/A Foto: Reprodução

A ideia original de Zeroquatro era a de pôr na capa do álbum, lançado nesta quinta-feira, a foto de um caixão, mas a gravadora Estelita achou uma imagem pesada demais em plena pandemia de Covid-19. Ele pensou então na opção de uma ilustração. No primeiro rascunho que recebeu de Wendell Araújo, já estava a imagem de um defunto sendo carregado ladeira de Olinda acima, no carnaval. O que o animou.

— Esse bloco realmente existia, num carnaval mais underground da madrugada, de décadas atrás. Era uma galera que saía com um caixão de madeira e que botava nele qualquer um que encontrasse apagado na calçada. Só não fui jogado num caixão desses, depois de ter detonado um garrafão, porque um colega ficou me vigiando na sarjeta — recorda-se o músico.

Além de ter sido composto e gravado durante a longa quarentena da Covid-19, "Walking dead folia” ainda foi criado em meio a um drama pessoal de Zeroquatro, que terminou um casamento de 22 anos e ficou um tempo sem conseguir sequer ver os filhos. Assim, teve muito tempo para burilar arranjos e letras.

— Há mais de dois anos que eu estou absolutamente sozinho em casa, em um apart hotel sem varanda. Todo mundo sextava com alguma companhia e eu, sozinho, depois de algumas doses, sempre acabava cometendo o sacrifício de copos e pires, que se quebravam na minha mão – conta ele, que relatou a experiência na canção “Blue gin & os seres (de vidro)”. — Uma tarefa para os sábados da pandemia foi investigar esse poltergeist que rolava. E meus companheiros eram o violão e as palavras.

Lima Duarte comenta post de Regina Duarte sobre Jair Bolsonaro: 'Não pode acabar assim, Regina'

Algumas das composições que surgiram foram puros exercícios de léxico, como “Um pitbull chamado Van Gogh”. Outras, como a faixa-título e “Usura emergencial”, tiveram suas letras longamente adiadas pelo “noticiário efervescente” e o “pandemônio de notícias” da pandemia. Mas em “Walking dead folia”, Zeroquatro quis ainda fazer a segunda regravação de “Musa da Ilha Grande”, faixa de “Samba esquema noise”, primeiro LP do grupo, de 1994. A razão? Críticas que a música vinha recebendo de mulheres, especialmente da cena antifascista.

— O cara não pode mais secar uma pessoa saindo da água? É proibido ter desejo? Porque se é nas letras do funk proibidão e do bregafunk, todo mundo acha lindo. Isso me deu a vontade de dar uma atualizada na música — explica ele, que chamou para dividir a nova versão a cantora Doralyce, estrela do brega funk de Recife e grande fã da “Musa da Ilha Grande”. — E o curioso é que ela disse ter conhecido essa música na versão do Charlie Brown Jr.!

Em 2022, quando se completam 30 anos desde que escreveu e publicou o manifesto “Caranguejos com cérebro” (marco inicial do movimento manguebeat, encabeçado pelo Mundo Livre S/A e por Chico Science & Nação Zumbi), Fred Zeroquatro avalia a permanência daquelas ideias.

— O mangue é territorial e, apesar de hoje você ter uma dimensão mais efêmera, digital, do não-lugar, acho que ele deixou um legado. Hoje, por exemplo, não tem um percussionista em Pernambuco que abra mão da alfaia [ tambor típico do maracatu ]. Um dos lugares mais visitados em Recife é a estátua de Chico Science, e o que mais tem de pichação na cidade é com frases dele — diz o compositor, que vê no brega funk da periferia de Recife uma decorrência da “parabólica enfiada na lama”, imagem incluída no manifesto. — Eles não estão estagnados. Tem um amigo meu que, inclusive, inaugurou um gênero meio bregafunk, meio trap. Eles são antenados.