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Cultura Música

Crítica: álbum póstumo de Charles Bradley faz despedida à altura da lenda tardia

'Black Velvet' exalta tanto o lado autoral quanto o de intérprete do americano, que completaria 70 anos nesta semana
O cantor e compositor americano Charles Bradley morreu em setembro de 2017 Foto: Divulgação/Isaac Sterling
O cantor e compositor americano Charles Bradley morreu em setembro de 2017 Foto: Divulgação/Isaac Sterling

RIO — O americano Charles Bradley saiu de cena em setembro de 2017, vítima de câncer, em meio ao Rock in Rio (ele faria sua estreia na cidade no evento, mas foi obrigado a cancelar a participação dez dias antes , por conta da doença). De infância pobre, Bradley chegou a morar nas ruas, e por anos foi imitador de seu maior ídolo, James Brown. O primeiro disco solo, “No time for dreaming”, saiu apenas em 2011, quando o cantor e compositor tinha 62 anos.

Agora, na semana em que completaria 70 anos, seus fãs são presenteados com o disco póstumo “Black Velvet”*, apenas o quarto de uma carreira marcante que começou tarde demais — mas a tempo de transformá-lo em uma lenda da soul music deste século.

“Black Velvet” — a alcunha que usava nos tempos como Brown — faz um belo trabalho ao resumir os méritos de Bradley que o fizeram atingir tal patamar. Composto por dez faixas gravadas durante as sessões de estúdio dos três discos do músico, ele enaltece, acima de tudo, o poder hipnotizante de sua característica voz rouca, como fica claro em “(I hope you find) The good life”, canção sobre um término pesaroso que começa quase falada, acompanhada apenas pelo groove do baixo, e cresce em tons psicodélicos — uma faceta raramente explorada em sua discografia.

Entre as canções autorais inéditas, compostas por Bradley com seu fiel parceiro Tommy “TNT” Brenneck, salta aos ouvidos “I feel a change”, que traduz, em um soul de cartilha, a essência da figura de Bradley: o amor pela música e a gratidão por suas conquistas. Tanto que foi traduzido em um clipe tocante, em preto e branco, que mostra um pouco do magnetismo que os shows do cantor causavam na plateia, sua entrega (ele saía do palco encharcado de suor e lágrimas) e o carinho que trocava com o público.

Mas “Black Velvet” acerta também ao explorar outro trunfo de Bradley: o de grande intérprete, que se apropria, e transforma em suas, músicas gravadas por outros artistas ( a versão para “Changes” , faixa-título de seu último álbum, convenceu até os exigentes fãs do Black Sabbath). Aqui, “Stay away”, do Nirvana, perde seu verso final — “Deus é gay”, que o religioso Bradley se recusou a cantar —, mas ganha em tensão e espiritualidade. “Heart of gold” deixa de ser o country folk original do Neil Young e vira um pop-soul radiofônico, guiado por arranjo de metais.

Artista visceral como poucos que realmente merecem tal adjetivo, Bradley deixa literalmente seu grito final em “Victim of love”, faixa-título de seu segundo disco que aqui ganha uma versão elétrica. Enquanto se assume “vítima do amor”, ele berra e acerta notas que poucos são capazes. “Você chegou no fundo da minha alma. Você tocou meu coração”, despede-se.

Cotação: ótimo.

* “Black Velvet” chega às plataformas de streaming na próxima sexta-feira, 9 de novembro, mas já pode ser ouvido no site da rede americana de rádio NPR .