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Cultura Música

Do queer ao som raiz, sertanejo mantém domínio no Brasil sendo mais uma mistura popular do que um gênero musical

Mais ouvido do país, mercado bilionário não para de absorver outros estilos, criando novas vertentes, e expande seus domínios territoriais
Das 50 músicas mais tocadas em todo o país, 33 vêm do sertanejo Foto: Infoglobo
Das 50 músicas mais tocadas em todo o país, 33 vêm do sertanejo Foto: Infoglobo

O fenômeno de popularidade do sertanejo é traduzido através de números e marcas. É um mercado que movimenta dezenas de bilhões de reais, mas difícil de calcular. Para se ter uma ideia, no mundo pré-pandemia, somente a parte de shows chegava a arrecadar cerca de R$ 4 bilhões. A Festa do Peão de Barretos , a meca do sertanejo, recebia um público total de um milhão de pessoas. O gênero foi o mais escutado do país na última década, segundo o Spotify, e artistas como Marília Mendonça , Jorge & Mateus, Zé Neto & Cristiano, Gusttavo Lima e Henrique & Juliano disputam entre si o topo dos rankings de músicas e álbuns no streaming.

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O mesmo segue no rádio. Levantamento da Crowley da última semana mostra que das 50 músicas mais tocadas em todo o país, 33 vêm do sertanejo. E a pandemia fez o estilo atingir recordes no YouTube: sete das lives mais assistidas em todo o mundo são dele. Mas o que está por trás destas cifras e recordes? Um grande negócio, no qual o sertanejo é mais um rótulo do que exatamente um gênero musical.

Isso fica claro num experimento simples. Ouvindo a playlist “Esquenta sertanejo” no Spotify (a maior do país, e que está entre as dez maiores do mundo) em modo aleatório, dificilmente uma faixa vai lembrar a outra, em termos musicais. É um grande caldeirão que passa por funk, pop eletrônico, piseiro, forró, brega, pagode...

— Nesses dez anos de domínio no mercado, o sertanejo virou a verdadeira música popular brasileira. É um ritmo camaleão, que se adapta aos outros. Traz o concorrente, aglutina e se renova. Por isso, não sai do primeiro lugar — explica o compositor Júnior Gomes, autor de dezenas de hits, como os atuais “Último beijo” (Bruno & Marrone com Wesley Safadão) e “Despedida de casal” (Gustavo Mioto).

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Para Júnior, que pode compor no mesmo dia um forró ou uma bachata (ritmo da República Dominicana apropriado com sucesso por Gusttavo Lima em 2018 e copiado à exaustão), o que mantém suas músicas populares é a linguagem: palavras fáceis, “do diálogo natural do brasileiro”. Para o cantor goiano Felipe Araújo, que fez o “pagonejo” se tornar mania nacional em 2019, quando lançou com o carioca Ferrugem o hit “Atrasadinha”, o sucesso do sertanejo também está nos instrumentos (“a sanfona, o violão na cara”) e nos ritmos (a vaneira, a bachata...). Mas ele diz que gosta mesmo é de misturar.

— É o que o público gosta. O sertanejo e o pagode estão muito forte no coração do brasileiro, a linguagem é parecida — lembra ele, que lançou anteontem uma nova dobradinha com Ferrugem, “Eu + você”.

Parece que foi ontem

É bem verdade que desde que deixou de ser o modão de viola, apresentado comercialmente ao Brasil em 1928, há quase cem anos, quando Cornélio Pires registrou num disco de 78 rpm a música caipira pela primeira vez, a trajetória da canção sertaneja foi de aglutinação, andando de mãos dadas com o desenvolvimento econômico do Brasil rural.

— Na década de 1970, quando veio a primeiro ruptura, tivemos a rancheira mexicana e a polca paraguaia com Milionário e José Rico e João Mineiro e Marciano. O bolero nos anos 1980. O country americano nos 1990 com Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo & Luciano etc. — enumera Marcus Bernardes, pesquisador do gênero, à frente do “Blognejo” há 14 anos. — Também nos anos 1990 teve o rock balada, tipo Bon Jovi, muito forte. Depois veio o pop-rock inspirado no “Acústico MTV” na origem do universitário, agora a bachata...

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A última grande virada foi o movimento chamado de universitário, com a qual o sertanejo virou um grande negócio, num “país” cuja capital é Goiânia e onde arte e cifras andam juntas. Nele, artistas iniciantes têm seus passes comprados por empresários, como acontece com ídolos do futebol.

A música que é a mais cantada dos karaokês de norte a sul do Brasil completa 30 anos de seu lançamento. 'Evidências', de Chitãozinho e Xororó, é um sucesso que já não vive só na voz de seus autores, por isso o GLOBO convidou músicos e artistas para interpretar o hit: Diogo Nogueira, Maria Rita, Duda Beat, Lucas Silveira, Luis Lobianco, Regina Casé, MC Guimê, entre outros.
A música que é a mais cantada dos karaokês de norte a sul do Brasil completa 30 anos de seu lançamento. 'Evidências', de Chitãozinho e Xororó, é um sucesso que já não vive só na voz de seus autores, por isso o GLOBO convidou músicos e artistas para interpretar o hit: Diogo Nogueira, Maria Rita, Duda Beat, Lucas Silveira, Luis Lobianco, Regina Casé, MC Guimê, entre outros.

Troca-troca

O nome “universitário” caiu em desuso, mas fez sentido no final da década de 2000, quando surgiu. Estudantes saíam do interior para estudar nas capitais e, quando voltavam à terra natal, levavam consigo as músicas que ouviam em barzinhos e baladas. Ao mesmo tempo, duplas davam uma cara mais urbana a elementos do sertanejo em pontos geograficamente estratégicos: João Bosco & Vinícius no Mato Grosso do Sul, César Menotti & Fabiano em Minas Gerais, Jorge & Mateus em Goiás e Fernando & Sorocaba, que transitava entre o interior de São Paulo e o Paraná.

— Com certeza, nosso sucesso se deve às misturas — admite Fernando, que juntamente com Sorocaba acaba de lançar parcerias com Tarcísio do Acordeon e Barões da Pisadinha, fenômenos no Nordeste. — Ninguém pode falar que o sertanejo tem preconceito musical. É um meio acolhedor. Quando o funk estourou, a gente puxou. A gente vai atrás do que é popular. Nossos shows são como playlists, têm um pouco de tudo.

Enquanto a bachata oscila e a mistura com o reggaeton e o trap ainda não deu liga, o sertanejo camaleão abraça de vez o forró e suas renovações populares, como o piseiro e a pisadinha. Não é à toa que muita gente veja Wesley Safadão como artista sertanejo, por mais que ele seja do forró. Para conquistar espaço nas festas do Nordeste, artistas dos escritórios de Goiânia investiram forte na fusão do forrónejo, que agora beneficia também músicos nordestinos, como DJ Ivis, Barões da Pisadinha e Tarcísio do Acordeon, que chamam a atenção entre as mais tocadas.

— No ranking das cinco mil músicas mais ouvidas nas plataformas, o forró é o segundo ritmo nacional mais tocado e o que mais cresce, atrás apenas do sertanejo — diz Gustavo Faria, gerente artístico da Som Livre. — Acreditamos que, ao lado do sucesso do sertanejo, o forró também chegou aonde chegou com a intenção de somar.

Novas cores

O cantor de queernejo Gabeu Foto: Divulgação/Gabriel Renné
O cantor de queernejo Gabeu Foto: Divulgação/Gabriel Renné

Em tempos de consumo por playlists (são mais de cinco milhões contendo a palavra “sertanejo” apenas no Spotify), essa aglutinação caiu ainda mais no gosto popular. A explosão do feminejo por volta de 2016, quando deixou de ser dominado por homens e viu a entrada de Marília Mendonça (a mais ouvida do país nos últimos dois anos), Maiara & Maraisa e Simone & Simaria, ampliou o público e as possibilidades. Uma abertura que permitiu a criação até do queernejo, com artistas LGBT+, algo impensável para o estereótipo do ouvinte padrão do gênero.

— Meu movimento é sair do sertanejo e levá-lo para o público LGBT, que frequenta as baladas mais pop e não se sente representado em ambientes da música sertaneja — conta o cantor Gabeu, filho de Solimões (da clássica dupla com Rionegro), que se lançou com o hit “Amor rural”. — Gosto de puxar elementos do sertanejo clássico, de Milionário e José Rico, as influências latinas, as guitarras de Zezé Di Camargo & Luciano, e trazer para minha estética.

Entre tantos subgêneros que hoje formam a colcha de retalhos que chamamos de sertanejo está o que ficou rotulado como “bruto”, um segmento que opta por não fazer misturas. Expoente desta vertente, a dupla Jads & Jadson tem mais de 800 mil ouvintes mensais no Spotify. Curiosamente, pelas voltas que só um universo tão abrangente pode dar, a mais rústica das duplas bebe de fontes parecidas com o fenômeno do queernejo: a música caipira.

— Já vimos muita moda. Mas nosso propósito é levantar a bandeira da viola, o romantismo e o caipirismo, sem modismos — pontua Jads.