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Cultura Música

Emicida: 'Se não fui homofóbico pela convicção, fui pela inércia ou, no mínimo, cúmplice'

Em artigo para O GLOBO, rapper lembra os tempos de escola para refletir sobre a homofobia presente em nossa sociedade
Majur, Pabllo Vittar e Emicida, em cena do clipe de 'AmarElo' Foto: Divulgação
Majur, Pabllo Vittar e Emicida, em cena do clipe de 'AmarElo' Foto: Divulgação

RIO - Eu estava no Ensino Fundamental, ali pelo final dos anos 1990... Embora fosse muito tímido (e até triste), me comportava como alguém extrovertido, porque debochar de tudo era a minha forma de evitar conversas que pudessem escancarar a proporção das minhas feridas. As minhas piadas ágeis conseguiram me salvar de algumas ciladas, hábito este que depois converti em rimas nas batalhas. Lembro que as crianças mais claras se organizavam em grupos e perseguiam tudo aquilo que consideravam ser “o diferente”. Mas houve uma situação que gerou risos generalizados dos alunos, inclusive da professora. Um garoto homossexual foi transferido para a nossa sala e, diariamente, ele ouvia piadas e sofria agressões extremamente violentas, como no dia em que jogaram uma lata de lixo nele. Eu, de forma alguma, conseguia ver graça naquilo. Não porque eu fosse uma alma elevada, mas talvez porque eu tenha demorado para ter um convívio frequente com a dita referência masculina. O meu conceito de masculinidade sempre foi muito freestyle , conduzido pela postura da minha mãe. “Mulherzinha” nunca foi uma ofensa na casa de Dona Jacira, que sempre fez questão de mostrar — através da sua postura — que uma coisa é força e outra coisa é violência.

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Voltando... Até hoje me vem a péssima sensação daquele momento sádico da lata de lixo, porque embora eu discordasse das agressões que aquele colega sofria, eu nunca disse um “a” para que elas cessassem. Então se eu não fui homofóbico pela convicção, fui pela inércia ou, no mínimo, cúmplice. E isso me tornou igual aos outros, já que todo silêncio perante uma injustiça é parte da violência. Lembrar disso me traz a sensação de derrota, como se eu tivesse agredido o meu colega com a mesma lata de lixo. Não fiz, mas também não fui enérgico em barrar quem o fazia. Quantas vezes não permaneci em silêncio? Ao longo dos anos, outras situações correlatas me fizeram encontrar em mim aquilo que eu abominava. Percebi que tinha convicções nojentas que não alimentei conscientemente, mas estavam lá, envenenando o meu olhar a respeito de gente que não tinha a menor chance de se defender. Inocentes condenados.

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A música me fez conhecer pessoas e lugares incríveis. Hoje, a minha busca principal é a de cada vez mais ser um ser humano melhor. Certa vez, vi uma entrevista do Method Man dizendo que uma hora o hip-hop precisaria virar o espelho para si mesmo e falar sobre os nossos erros. Embora tardio, acho que esse é o momento propício para questionarmos em grande escala se, de fato, nosso discurso em prol da igualdade e do progresso está contemplando a todos e a todas. As mulheres e os nossos irmãos e irmãs LGBTQI+ têm nos feito evoluir significativamente com os seus discursos e apontamentos. E a nossa vitória só será verdadeira se conseguirmos nos livrar de valores excludentes que destruíram tantos de nós e que, hoje, assombram também o nosso movimento, que inicialmente nasceu para combatê-los.

*Emicida escreveu a convite do Segundo Caderno