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Expoentes da descentralização do rap nacional, Don L e Baco Exu do Blues entrevistam um ao outro

Enquanto o baiano fez perguntas variadas, cearense tirou dúvidas sobre o pagodão
Don L e Baco Exu do Blues se apresentam no Circo Voador neste sábado Foto: Divulgação/Larissa Zaidan (Don)
Don L e Baco Exu do Blues se apresentam no Circo Voador neste sábado Foto: Divulgação/Larissa Zaidan (Don)

RIO — Para quem acompanha a cena musical contemporânea brasileira, não é exatamente novidade que o rap nacional vive fase extremamente criativa, prolífica e, acima de tudo, impulsionando novas vozes e sotaques. Cada vez mais, rimas e melodias criadas por artistas de fora do eixo Rio-São Paulo têm feito a cabeça dos amantes do gênero.

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Em 2017, por exemplo, dois dos discos mais celebrados por público e crítica foram lançados pelo cearense (de criação) Don L ("Roteiro para Aïnouz, vol. 3") e pelo baiano Baco Exu do Blues ("Esú"). Eles apresentam seus respectivos trabalhos neste sábado, no Circo Voador.

Nascido em Brasília, criado em Fortaleza e radicado em São Paulo nos últimos anos, Don L já está na estrada desde 2005, quando criou o grupo Costa a Costa com Nego Gallo. Considerado um dos nomes mais criativos e destemidos da cena, ele acertou em cheio ao mirar nas referências cinematográficas e destilar críticas contundentes à Deus e ao mundo em seu disco mais recente, o sedutor "Roteiro para Aïnouz, vol. 3", primeiro número de uma trilogia reversa — Aïnouz, no caso, é Karim Aïnouz, diretor de filmes como "O céu de Suely" (2006), "Viajo porque preciso, volto porque te amo" (2010) e "Praia do Futuro" (2014).

Baco, por sua vez, é o símbolo de uma renovação. Com apenas 22 anos, conseguiu levar as rimas urgentes e desesperadas de "Esú", sobre preconceito, sexo, sexualidade, religião e caos urbano, para além das fronteiras soteropolitanas. Vem lotando shows por onde passa — a estreia no Circo, em dezembro passado, com Rincón Sapiência, foi marcada por rodinhas de pogo e fãs gritando todos os versos.

A pedido do GLOBO, Don e Baco entrevistaram um ao outro, e causa curiosidade analisar a diferença entre as perguntas formuladas por cada um. Enquanto o jovem Baco vê em Don uma referência de carreira — e, por isso, chega a pedir conselhos sobre trocar ou não Salvador por São Paulo —, o instigado Don foca na sua curiosidade sobre o pagode baiano, ritmo que domina as periferias de Salvador.

Leia abaixo essa troca de ideias:

BACO EXU DO BLUES ENTREVISTA DON L

Quais são os planos para o Costa a Costa? O grupo vai de fato voltar? E o quanto você acha que o grupo foi importante para essa nova safra de MCs nordestinos?

O Costa a Costa ainda vai lançar um disco sim. Acho que a gente fez a maioria dos emcees nordestinos dessa geração acreditarem que era possível estar entre os melhores do país vindo de onde a gente vinha, sem abaixar a cabeça como se a gente fosse segunda divisão.

Qual a influência de outras formas de arte, além da música, que você usa na hora de sua composição?

Na minha memória de adolescente vive o Peixe Frito Blues Club de Fortaleza, que era uma casa noturna de blues com uma instalação do artista local Marcelo Santiago. Desde então, nunca vi nada mais foda, e esse ano quero recriar isso de alguma forma. A gente não tem muito acesso à arte no Brasil. Eu não tive o acesso que eu gostaria de ter tido. E meu refúgio sempre foi a música, e os livros, que é o que a gente tem de acesso mais fácil. A música é a salvação da arte do nosso povo, né ? Hoje eu tô convencido de que a gente que faz música precisa cada vez mais dialogar com outros tipos de arte e levar pro grande público também, e levar pra eles o acesso ao que a gente não teve. Tá todo mundo muito ligado a joguinhos de marketing na internet pra fazer números e a arte que poderia estar mais em alta fica sempre em segundo plano.

Quais são os maiores nomes que estão em ascensão no momento para você? E os nomes que ainda são desconhecidos para o grande público que você acha que podem atingir tal ascensão?

Não que seja um nome novo, mas o Nego Gallo tem um dos melhores discos de rap brasileiro que eu já ouvi, que vai ser lançado esse ano. Vandal de Salvador. Makalister de Floripa. E acho que o Rio de Janeiro tem uma geração toda de moleques que ainda vão fazer muita coisa boa. Fora raríssimas exceções, eu acho que o rappers brasileiros ficam melhores depois de mais velhos, a maioria depois dos 30. Tem alguma coisa aí com a língua, com o acesso a produção musical, além do amadurecimento artístico. Então, acho que tem sim muito moleque novo chegando foda, mas tem uns caras como o Matéria Prima de BH, que tá na cena há um tempo, mas acho que ainda vai vir com o seu melhor trabalho. O Terra Preta ainda vai vir com seu melhor trabalho. O Amiri que tá entre os MCs de nível mais alto que já fizeram rap em português, e ainda não lançou seu melhor trabalho. E tem as exceções, como o Luis Lins de Recife, que é inacreditável. O Diomedes também é muito novo e já é muito foda. Essa rapaziada vai chegar num nível de maestria como MCs sem precedentes no Brasil.

Qual o próximo passo que o rap brasileiro tem que dar para chegar ao nível da indústria estrangeira?

Não sei se existe um próximo passo que o rap tenha que dar pra chegar no nível da indústria gringa, porque isso tá muito ligado a muitos fatores que dizem respeito mais ao país que a gente vive. Acho que o maior passo que o rap pode dar é contribuir pra mudar o país, se a gente mudar esse país, aí não tem pra ninguém, porque na merda a gente já é a segunda maior produção musical do planeta, imagina se a gente sai da merda. Mas isso é um longo processo, e a música nesse processo é só um fator entre muitos outros. Cada um tem que fazer sua parte.

Qual conselho você daria para um rapper que está começando? Ir para São Paulo ou continuar na sua terra? Por quê?

Isso depende muito. É meio inaconselhável. Não acho que seja necessário mais. Eu já estive apaixonado por São Paulo, e no momento quero ir embora de São Paulo sem olhar pra trás. Mas isso sou eu, esse cara que se vê num roteiro de Karim Aïnouz.

DON L ENTREVISTA BACO EXU DO BLUES

Eu tenho uma classificação de um tipo de som que eu chamo de rap de terceiro mundo, que é esse tipo de som que tem raiz no rap, mas que misturado com as culturas locais acabaram se tornando outra parada, com uma cara própria, como é o kuduro em Angola, o reggaeton na América Latina inteira, o dancehall na Jamaica, e aqui no brasil a gente tem o funk, que pra mim é o rap brasileiro. O funk tem origem no rap miami bass e depois adotou a batida do maculelê e levadas de samba pra criar um ritmo totalmente original brasileiro. Aí tem um bagulho que eu saco pouco, mas que me interessa, que é o pagode baiano, que tenho a impressão de ser o caminho inverso, um ritmo com origem na percussão brasileira e que agora aos poucos tenho sentido que vem adotando elementos do hip-hop. Você acha que isso procede?

Acho que procede, sim. Tanto o pagode baiano quanto o funk são as músicas realmente periféricas do Brasil, e acho que por isso tem esse contato tão forte com o povo.

Você acha que tá rolando esse caminho no pagode baiano de pegar elementos do rap?

Eu não acredito que o pagode baiano pegue elementos do rap, mas ele observa essa periferia para conseguir conversar com ela. Como é uma música extremamente periférica e extremamente popular, vem com os trejeitos, as gírias, e esse é o mesmo processo que o rap fez na gringa, então por isso a semelhança em si.

Você curte esse tipo de som?

Escuto muito pagode baiano, muito Ed City, muito Igor Kannário e a banda antiga dele, a Bronkka, Leva Noiz, Flavinho e Os Barões, Raghatoni... Gosto muito.

Eu sacava umas paradas do Ed City uma época, do Fantasmão, Psirico… O que eu vi do Ed City, por exemplo, pra mim se aproxima muito do que é o trap americano mais gueto, em termo de temática e contexto. Nesse cenário do pagode baiano, que tem várias subdivisões, qual delas é mais hip-hop e quem você acha que é o cara mais hip-hop?

Antigamente, o cara mais hip-hop era o Ed City. Hoje em dia, acho que não rola de ser mais hip hop, mas o mais rock star do rolê é o Kannário, o brabo, o chefe do bagulho. Tem o Chiclete Ferreira também. Eles formam a grande trindade do pagode baiano.

Imagino que você deve ter influência desses caras e que um dia você vai ser influência pra eles. Pensa nessa aproximação no futuro?

Penso nessa aproximação, sim. Já troquei algumas ideias com o Chiclete, tenho muita vontade de fazer um som com o Kannário também. Acho que poderia surpreender o Brasil uma junção dessas.