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Filipe Ret: 'Cheguei aqui porque fui um dos primeiros a me abrir pro mercado'

Rapper que tem o respeito de seus pares e enfileira hits em FMs populares apresenta seu disco 'Audaz' no Circo Voador
Filipe Ret: "Não adianta o cara ficar se ressentindo por não ser popular como a Anitta. A Anitta rebola, mano. Ela comunica com quem rebola" Foto: Elias Azevedo / Divulgação
Filipe Ret: "Não adianta o cara ficar se ressentindo por não ser popular como a Anitta. A Anitta rebola, mano. Ela comunica com quem rebola" Foto: Elias Azevedo / Divulgação

RIO - Filipe Ret toca em FMs populares e dialoga com rappers como Mano Brown, Djonga e Emicida. Faz shows em favelas do Brasil inteiro e em palcos como o Circo Voador — no qual apresenta nesta sexta-feira, pela primeira vez, o álbum "Audaz", terceiro de uma trilogia que começou com "Vivaz" (2012) e prosseguiu com "Revel" (2015).

Nesta entrevista, o rapper de 33 anos repassa sua trajetória desde quando na infância conheceu o rap via um disco de Gabriel O Pensador; conta como intuiu na adolescência que funk e rap — na época, vistos quase como antagônicos — se aproximariam da forma como acontece hoje; e avalia os mecanismos de mercado que levam ao sucesso, uma equação que incorpora "mercado" e "verdade".

— Minha verdade não é dançar em cima do palco, fazer performance. Não adianta o cara ficar se ressentindo por não ser popular como a Anitta. A Anitta rebola, mano. Ela comunica com quem rebola. A verdade é fisica, ela se reflete na sua pele, no seu corpo.

Você é representante de uma geração do rap brasileiro — e mais ainda de um grupo de artistas do rap — que cruza fronteiras entre o público de massa e o nicho dos manos. Como começou sua relação com o rap?

A primeira vez que ouvi rap foi um vinil do Gabriel O Pensador, que não sei como foi parar lá em casa. Era o primeiro disco dele, de 1993. Gostava da forma falada, achava bom ficar decorando as letras. Na sequência, conheci o funk. Cresci na subida do Morro Santo Amaro, no Catete. Era época dos raps: "Rap das armas", "Rap da felicidade", "Rap do Silva"... Pro carioca o rap era isso. Aí já rolou uma dúvida: o que é rap? É o Racionais MCs ou é esse rap do funk carioca. Pouco depois disso, já intuia que uma hora ia rolar esse encontro, essa fusão do rap com o funk. "Sobrevivendo no inferno", dos Racionais, foi uma febre aqui no bairro, junto com "Usuário", do Planet Hemp. Mano Brown e D2 foram grandes influências. Fui tentando entender isso, rap, funk, o rock e e atitude do Planet, o lance da maconha ali.

Quando você começou a fazer rap? O que o motivou?

Com uns 16 anos comecei a escrever. Fiquei sabendo da Batalha do Real e fui lá conhecer. Comecei a entrar no freestyle, no improviso, ganhei muitas batalhas, perdi a maioria. Tive um grupo chamado Livre Arbítrio, que fez poucas apresentações, sempre pra duas cabeças, seis cabeças. Até que veio uma nova cena, determinante pro rap que viria depois encabeçada por Emicida, Projota e Rashid, que começaram muito próximos. Eles trouxeram uma nova forma de cantar, uma atitude marrenta mas com ideias mais pra frente. Aí me reencontrei.

E como nasceu o primeiro disco, "Vivaz" (2012)?

Projota me ligou,  tinha visto umas coisas minhas, me chamou pra fazer uma participação com ele. A partir daí fui començando a pensar maior. 2012 tinha umas 20 faixas pra lançar. Chamei Daniel Shadow Mãolee, "vamos criar nosso selo" (Tudubom Records). Através do selo unimos força pra levar adiante o "Vivaz". As dez músicas dele me fizeram rodar o país.

Por que você acredita que teve esa força junto ao público?

Sempre me expus nas letras. As punchlines (versos de impacto, sintéticos, frases de efeito) pegaram muito a galera. Tive um blog onde escrevia minhas filosofias de bar. Muitas coisas ali viraram punchlines. Acho que pode ter sido um pouco pela minha imagem. Por eu ser branco, ter vindo de um lugar diferente, a Zona Sul do Rio. Mas nunca senti preconceito no rap. Brown me recebe, todos respeitam minha caminhada. Tive privilégios por ser branco, claro. Mas não nasci em berço de ouro. Sempre houve dificuldades. Minha mae é professora, eu fui bolsista na escola que ela dá aula. Talvez tenha tido aproximação com as palavras a partir daí.

Mas isso é suficiente pra atingir um público do tamanho do seu?

Não, cheguei aqui também porque fui um dos primeiros a me abrir pro mercado. O "Vivaz" eu vendia na rua. Para o "Revel" (2015), fechei com o selo da Skol Music, conseguimos entrar nas rádios... É uma equipe muito grande trabalhando por isso. "Revel" me fez tocar em todas as favelas, até as favelas de fora do Rio. E tenho esse outro circuito de encher um Circo Voador. Sempre tô buscando isso, quero fazer coisas mais pesadas e coisas mais leves. Tenho essas duas energias em mim, faço questão de botar. Sempre defendi ter essa liberdade na minha criação, liberdade de fazer algo comercial. Porque eu gosto de fazer música comercial. Até pra ter um show mais completo, com estéticas diferentes. "Neurótico de guerra", por exemplo, explora punchlines. Escrevi muito tempo assim, mas se fizer um show só assim me canso. "Vivendo avançado" é uma forma de escrever mais trap. "Libertina" é mais comercial. "Invicto" é mais percussiva na forma de colocar as palavras. Ainda tem a forma de colocar a voz, as embocaduras são diferentes: mais sensual, mais agressiva...

Existe fórmula pra ser pop?

O pop tem fórmulas, e acho mais fácil escrever algo pop. Mas existe a diferença entre escrever algo popular e isso bater de fato pro público. Tem muita coisa da Anitta e da Ludmilla que podia não ser ouvida como é, mas muita gente trabalhou para que fosse. Tem mil coisas nessa equação: a química certa da letra com a música, a sua química na hora em que você grava aquela letra... Mas vejo muita gente criticando o rap, a coisa de ele estar se popularizando. Sempre foi assim, nos Estados Unidos sempre que surgia um nome novo criticavam. Quem fazia linha mais cool criticava porque queria ficar no cool, enquanto tinha uma galera indo pro pop. Isso acontece nos vários gêneros.  Sempre vi intuitivamente que tinha que manter o respeito, minha seriedade, mas também lançar coisas mais comerciais. Mas esse sou eu, tenho meu lado pessoal underground e meu lado pessoal popular. Minha verdade não é dançar em cima do palco, fazer performance. Não adianta o cara ficar se ressentindo por não ser popular como a Anitta. A Anitta rebola, mano. Ela comunica com quem rebola. A verdade é fisica, ela se reflete na sua pele, no seu corpo. Tem coisas nas quais a gente pode se tornar mais popular, se abrir. Mas sei que tenho que fazer um esforço pra ser mais amigável pra mais gente. É um esforço que faço, cada um sabe a medida de seu esforço.

As músicas do projeto Poesia Acústica, do qual você faz parte, estão entre as mais tocadas do Brasil, com rap e letras quilométricas...

Acho sensacional o Poesia Acústica. A lírica brasileira é muito avançada. Tem gente com muita técnica no Brasil: Orochi, Xamã... Essa molecada vem forte. E as produtroras também vêm fazendo o trabalho de aquecer esse mercado. O Paulinho (Alvarez) da Pineaplle Storm (produtora do Poesia Acústica) é um obcecado no jogo, obcecado por acertar. A década de 2010 foi muito importante pro rap nacional. Na próxima década vamos ter um avanço muito maior. E lá em 2030 talvez a gente consiga estar no mercado que a gente sonhava ter nos anos 2010.

"Audaz" é seu disco de referências mais amplas que seus dois discos anteriores. Dialoga com funk proibidão, trap, jazz, reggaeton... Como nasceu isso?

Disco é uma fotografia, é a hora que você escolhe interromper os processos. Eu estava cheio de referências, fui colocando essas referências e sacando até onde elas tinham relação com a verdade que eu estava botando nas letras. Foi intencional buscar essa variedade. Quando você começa a fazer show e vê que falta uma certa energia no seu show, você vê como pode complementar. Quis passear nas rimas mais retas, nas rimas boom bap (estilo de rap popularizado nos anos 1990). Fui tentando trazer um universo inteiro pra dentro do "Audaz". E tô mais presente nas produções. Como era "Audaz" o nome, cabia ousar mais, ser mais audacioso nos lugares estéticos nos quais queria ir.

Por que a marra tem tanto apelo no rap e, mais especificamente, nas tuas letras?

Tem muito a ver com a criação, viver com o pessoal da rua, ir pra baile de favela, ir pra baile de corredor. Esse universo de quem andou na rua, teve essa fase. Aqui no Catete isso era muito forte. É uma vivência que todo MC de rap tem. Uma vez meu sobrinho falou: "Queria ser MC mas não tenho essa vivência pra ser MC, então vou ser produtor" (risos). A cara a tapa que se coloca pra ser MC exige sagacidade da rua. Todo MC teve esses dois aspectos, a vivência de rua e o lado mais nerd, do estudo, de ler, de parar pra pensar na palavra, nas ideias. O MC tem uma fibra intelectual.