Música
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O pianista húngaro András Schiff, em recital em São Paulo — Foto: Divulgação/Cauê Diniz
O pianista húngaro András Schiff, em recital em São Paulo — Foto: Divulgação/Cauê Diniz

O pianista András Schiff, de 69 anos, é nitidamente um homem de outra época. Quando pega o microfone para se dirigir à plateia, conforme fará hoje no Teatro Municipal do Rio, é para afirmar as coisas como elas realmente são. Para este húngaro radicado no Reino Unido, que chega como atração da série O GLOBO/Dellarte de concertos internacionais, o contato com a plateia é uma oportunidade que não se perde, mas tampouco algo que se conduza sem a devida economia.

É aí que seus recitais se tornam uma sala de estar, onde um mestre do piano conta algumas pequenas verdades simples — e algumas leves ironias — a fim de deixar o ouvinte conhecer a obra, independentemente do pianista que tem diante de si. Pode ser uma ilusão, já que dificilmente se falará de interpretação sem intérprete. Mas Schiff é dotado de uma “humildade espetacular” quando toca Bach, Haydn, Mozart e Beethoven, e isso ficou muito claro nos dois concertos que deu na Sala São Paulo, quarta e quinta passada, pela Série Cultura Artística. Ouvi-lo foi como estar em torno do seu piano, convidado por ele, numa força centrípeta, porém gentil.

— Nos dia de hoje, prefiro ser livre e flexível. Antes a gente punha à disposição dos organizadores programas detalhados, e isso era um fardo pesado — contou Schiff ao GLOBO. — De que adianta determinar qual sonata de Beethoven eu vou tocar daqui a dois anos? Depende de muita coisa, da sala, da acústica, do instrumento disponível. Como tenho um repertório muito amplo, costumo decidir no dia em que vou tocar e converso com a plateia. Isso cria uma bela conexão entre nós.

Isso significa que os cariocas poderão ver um repertório muito diferente do encontrado na quinta-feira, aberto com o primeiro prelúdio e fuga do Cravo Bem Temperado, de Bach, conhecido por ter se tornado a “Ave Maria” de Charles Gounod. Schiff a tocou a seu modo, sem arroubos egocêntricos, como se tivesse começado um exercício matinal que logo depois revela sua endorfina, o prazer de cumprir a tarefa antes mesmo que ela chegue ao final.

A isso se seguiram a Suíte Francesa n 5, BWV 816, do mesmo Bach, uma Giga de Mozart inspirada em Bach, o Ricercare a TRE da “Oferenda musical”, também de Bach, a fantasia em dó menor de Mozart e a última sonata para piano de Haydn (a número 62, em mi bemol maior), a quem chamou de “filósofo em prosa”, enquanto Mozart seria um poeta cantante. Com atenção aos contrapontos e sem apelar a efeitos de dramaticidade, Schiff pareceu restabelecer certa verdades dessas obras, além de deixar muito claras as semelhanças entre elas.

Com uma articulação precisa, e uma postura sem afetações, suas mãos se curvam comedidamente sobre o teclado com um fraseado que impressiona pela limpidez, sobretudo porque não é dos pianistas que extraem um volume enorme do piano — a exemplo da ucraniana Valentina Lisitsa.

— Como obviamente não sou um estreante, quem conhece minhas gravações sabe o que pode encontrar: Bach, os clássicos vienenses, romantismo alemão… Não vai ter Liszt, não vai ter Rachmaninov, nem Stockhausen nem Boulez. Para esses, você terá que ir a outros recitais.

Para o Rio, a Dellarte sinalizou haver obras de Bach, Brahms, Mendelssohn e Schumann.

A parte mais reveladora desse húngaro que não pisa em sua terra natal há mais de dez anos, enojado pela política conduzida pela extrema direita de Viktor Órban, surgiu após o intervalo, quando anunciou as Seis Bagatelas op. 126 e a sonata a Waldstein, ambas de Beethoven. A forma assombrosa como mão direita e mão esquerda se entrelaçam na mesma frase de abertura do Allegro inicial, como se fossem uma única mão, abriu a segunda parte do concerto como uma dádiva a mais. Até que, antes de começar a Waldstein, Schiff pediu a atenção do público à importância do uso inédito do pedal do piano para criar uma sonoridade orquestral:

— Beethoven é muito claro sobre o que fazer aqui, e eu vou seguir cada instrução dele.

Aqui, Schiff soou irônico, justamente por não ser um pianista que abusa dos pedais, especialmente para fins de volume. Sua Waldstein soou ágil, elegante, mas talvez tenha exposto o momento mais pessoal do artista que honra a partitura a partir de suas convicções, em vez de submetê-la à mera vontade. Como dizia Pablo Casals, de quem Schiff se lembrou em conversa com o GLOBO: “Liberdade, mas com ordem. Anarquia não é liberdade”.

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