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Cultura Música

Instituto Moreira Salles reúne 46 mil gravações de 78 rotações em site

Ferramenta permite criação de playlists com fonogramas de artistas como Carmen Miranda, Francisco Alves e João Gilberto
Discos Foto: Arte
Discos Foto: Arte

RIO - Foi um caso de amor à primeira vista — e audição. O disco de 78 rotações chegou ao Brasil em 1901, e seu processo de produção, gravado em cera, adaptou-se como uma luva ao calor tupiniquim. Para completar, os músicos locais logo tomaram gosto pela coisa: em 6 meses, 300 gravações foram feitas, e a primeira foi lançada no ano seguinte. Cinco décadas da história fonográfica brasileira estão registradas em cerca de 35 mil disquinhos pequenos, em geral com uma música de cada lado. Nos anos 1950, começou a decadência do formato, que tinha como matéria-prima a goma-laca, pesada e frágil. O LP — um pouco maior, gravado em fita magnética, com 33 rotações por minutos, e feito em vinil, material mais leve e resistente — passou a reinar. As matrizes do antigo rei em muitos casos viraram sucata, vendidas como ferro-velho por ter prata em sua composição. Por isso, o recém-lançado Discografia Brasileira ( www.discografiabrasileira.com.br ), site do Instituto Moreira Salles (IMS) que reúne significativa parte da produção daquela fase, com 46 mil arquivos de áudio, merece atenção.

Já se foi o tempo em que era um sofrimento ouvir uma música específica. Mesmo gravações consideradas raras se tornaram relativamente fáceis de se encontrar, através da internet. Por exemplo, alguns discos de 78 rotações por minuto, como os presentes neste vídeo, podem ser ouvidos no site Discografia Brasileira, que tem 46 mil arquivos de áudio.
Já se foi o tempo em que era um sofrimento ouvir uma música específica. Mesmo gravações consideradas raras se tornaram relativamente fáceis de se encontrar, através da internet. Por exemplo, alguns discos de 78 rotações por minuto, como os presentes neste vídeo, podem ser ouvidos no site Discografia Brasileira, que tem 46 mil arquivos de áudio.

Estão lá o disco pioneiro lançado no país (“Isto é bom”, de Xisto Bahia, cantado por Bahiano em 1902), o primeiro samba de sucesso (“Pelo telefone”, de Donga, em duas gravações de 1917, uma instrumental e outra cantada), o disco pioneiro do sistema elétrico de gravação (com “Passarinho do má” e “Albertina”, por Francisco Alves, em 1927), o início da era do baião (“Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, com Quatro Ases e Um Coringa, em 1946), o primeiro rock brasileiro gravado (“Rock n’ roll em Copacabana”, por Cauby Peixoto, em 1957) e o início da bossa nova (com “Chega de saudade”, de João Gilberto, em 1958).

‘Álbum de figurinhas’

O IMS já vinha adquirindo há anos os acervos de alguns dos mais empenhados pesquisadores do país. São 30 coleções, de nomes como Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão — com 6 mil discos cada. A tarefa seguinte (e trabalhosa) era digitalizar o material e organizá-lo para permitir a pesquisa online.

— A verdade é que, se sobraram discos e agora estamos conseguindo levá-los ao público, é graças a esses colecionadores. É o lado triste, mas também romântico dessa história — diz Bia Paes Leme, coordenadora de Música do IMS, que trabalhou à frente da turma que digitalizou e criou o site.

O Discografia Brasileira registra a existência de 63.323 fonogramas — e, desses, 46.660 por enquanto têm áudios que podem ser ouvidos no banco de dados. Bia faz questão de usar a expressão “por enquanto”, porque acredita que, com o acervo no ar, conseguirá fazer avanços para completar o que chama de “álbum de figurinhas”.

— O álbum de figurinhas começou a ser montado em 1975, quando alguns desses pesquisadores, de várias partes do país, se reuniram para criar um banco de dados único com todas as gravações existentes. O resultado veio em 1982, com um catálogo de cinco volumes publicado pela Funarte. Ele é a base do que fazemos hoje — diz Bia, explicando que, neste levantamento, foram registrados vários discos a partir de seus números de série, mas que jamais foram encontrados.

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Além da colaboração que espera receber de gente que possa ter discos de 78 rotações avulsos, o Instituto Moreira Salles já tem em mãos um novo acervo que pode fazer toda a diferença para completar o álbum de figurinhas. Em meados de 2019, a instituição adquiriu a maior coleção do Brasil. Ela pertencia a Leon Barg (1930-2009), criador da gravadora Revivendo. Os 31 mil fonogramas de Barg já estão inventariados, e após o processo de digitalização, os inéditos serão incorporados ao site.

Mas para além do tamanho dos acervos particulares, houve um colecionador que fez toda a diferença para que o público possa ouvir esses fonogramas agora. Hoje com 86 anos, o cearense Miguel Angelo de Azevedo, o Nirez, passou décadas reunindo discos e anotando tudo o que se sabia sobre os 78 rotações brasileiros. Foi peça crucial para que o catálogo da Funarte fosse publicado, mas depois dele seguiu “completando o álbum”.

— Há coisa de duas décadas, meu filho instalou um computador com programa de banco de dados em casa. Ao longo de sete anos, fui preenchendo tudo que estava no catálogo, e completando com novas descobertas — conta ele, que licenciou seu banco de dados para o IMS e está satisfeito por ver o resultado do esforço de vida virar um site. — É gratificante porque a gente vê o trabalho ganhar utilidade pública. De que adianta reunir tanta coisa se não for para fazer todo mundo ouvir?

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Fã de serenatas (“sou um romântico convicto”), tendo listado suas 10 prediletas no site, Nirez diz que as principais lacunas de áudio são as de discos dos primeiros tempos, gravados na fase mecânica, realizada com cones e cornetas entre 1902 e 1927 — naquele ano, com a chegada dos microfones, ela foi substituída pela elétrica, que durou até a década de 1960.

— De vez em quando aparece algo novo, mas eu espero que a gente nunca encontre tudo. Infeliz do pesquisador inveterado que completa a sua coleção! — brinca Nirez, que vendeu seus 40 mil fonogramas no formato digital para o IMS, mas fez questão de continuar com as bolachas em casa.

Com ferramenta para cruzar dados nas buscas, o site permite que os usuários montem suas próprias playlists, cujos links podem ser compartilhados diretamente em redes sociais. Já há por lá algumas criadas pela equipe, como a que reúne os 25 fonogramas gravados pela cantora Sylvia Telles, e até coisas mais despretensiosas, como uma dedicada ao Flamengo — são 20 faixas, de 1937 a 1962, de nomes como Lamartine Babo e Wilson Baptista, sobre o rubro-negro.

Chico Alves mecânico e elétrico

Editor do site, o pesquisador e jornalista Pedro Paulo Malta chama atenção para a possibilidade de observar a evolução na qualidade de gravação ao viajar por fonogramas de um mesmo artista ao longo das décadas.

—Além da qualidade do áudio em si, você pode notar como os cantores mudam sua interpretação. O melhor exemplo disso é o Francisco Alves: o Chico mecânico, dos anos 20, é conhecido pelo vozeirão, ele grita para ser ouvido. O Chico elétrico, a partir dos anos 30, consegue ser suave em seu canto. Ouvindo essa transformação, você entende por que ele foi o maior cantor de samba do Brasil, pois soube se adaptar aos novos tempos.

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Também há textos com curiosidades — como o que destaca gravações de João Gilberto cantando em grupo, com um senhor vozeirão, anos antes de conceber a bossa nova. E dez programas da Rádio Batuta, do IMS , são dedicados a discos específicos do acervo, de nomes como Pixinguinha, Dorival Caymmi, Aracy de Almeida e Luiz Gonzaga, com comentários de especialistas — o primeiro deles, sobre Chiquinha Gonzaga, será reproduzido hoje, às 23h, na CBN.

As íntegras dos áudios só poderão ser consumidos online e deverão ficar restritos ao Discografia Brasileira. A possibilidade de permitir o compartilhamento em serviços de streaming de música, como Spotify e Deezer, por enquanto é descartada.

— Primeiro, porque pagamos um valor fixo para o Ecad ( instituição responsável por recolher direitos autorais ) para oferecer música online, e esses sites de streaming comercial permitem o consumo offline. Segundo, porque nossa intenção é justamente tentar combater um problema crônico dessas ferramentas, que dão poucas informações sobre as gravações — diz Bia.