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Jards Macalé rima pavor e humor como nunca no disco 'Besta fera'

Há coesão e alma de sobra neste trabalho construído por muitas mãos, como as de Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Tim Bernardes
Jards Macalé lança álbum 'Besta Fera' Foto: Leo Aversa / Divulgação
Jards Macalé lança álbum 'Besta Fera' Foto: Leo Aversa / Divulgação

RIO — O Jards Macalé dos anos 1970, dos seus três primeiros álbuns — “Jards Macalé” (1972), “Aprender a nadar” (74) e “Contrastes” (77) —, é um artista brutalmente criativo, sem freios, que deu passos largos em muitas direções e nunca se encaixou perfeitamente naquilo que era esperado de uma estrela da MPB. Por circunstâncias diversas, a partir dos 80, o lançamento de um álbum de inéditas de Macalé virou acontecimento comparável ao da passagem de um cometa. Só que agora, mais do que simplesmente esse disco que muito se aguarda e que pode trazer sabe-se lá o quê, “Besta fera” é finalmente uma deliberada tentativa de dar ao indomável senhor de 75 anos a coleção de faixas com o apuro e a adequação artística que ficaram no passado, em LPs que só adquiriram sentido um bom tempo depois de feitos, e para uma nova geração de ouvintes.

Coesão e alma de sobra

E a boa notícia é: há coesão e alma de sobra neste trabalho construído por muitas mãos. Depois de terem guiado Elza Soares pelo seu mais violento processo de reinvenção (o do álbum “A mulher do fim do mundo”, de 2015), Kiko Dinucci e Romulo Fróes auxiliam mais este artista-fetiche a concretizar um potencial. No caso, o da destilação de toda a morbidez romântica possível na ausência do parceiro Waly Salomão (1943-2003). Com mais contrastes do que o álbum que levou esta palavra no título, “Besta fera” apresenta canções coaguladas de palavras duras e imagens sombrias, mas que se resolvem musicalmente de forma solar, seja no cavaquinho de Rodrigo Campos e no arranjo da faixa-título, ou na estranha alegria que se desprega no samba “Longo caminho do sol” (“a brasa ardente, amor/ eu mastiguei/ feito o faquir da dor/ eu aguentei”).

Pavor e humor rimam em “Besta fera” mais do que em qualquer outro álbum de Macalé. A voz afogada num balde, incompreensível, em “Trevas”, aponta para o trágico mas também para o histriônico. E o dueto, antológico, com Tim Bernardes na gafierística “Buraco da Consolação” deixa o ouvinte confuso, sem saber se grita, chora ou explode na gargalhada. Outra das dualidades do disco está na sonoridade, à qual Dinucci e Fróes chegaram com ajuda do baterista Thomas Harres: ela consegue ser absolutamente 2019, ao mesmo tempo em que remete à do LP de 1972, extraída de uma banda em brasa com o baterista Tuti Moreno e o guitarrista/baixista Lanny Gordin (agora, Harres, o baixista Pedro Dantas e o guitarrista Guilherme Held cumprem a missão).

Com esse acompanhamento orgânico e cúmplice, Macalé voa alto em faixas como “Vampiro de Copacabana”, “Meu amor e meu cansaço”, “Limite” e “Tempo e contratempo”, mas também brilha tanto quanto, sozinho ao violão e voz, em “Obstáculos” e na resgatada “Valor” — todas elas, peças de uma grande colcha de frangalhos emocionais transformada em terno de impecável corte para este grande mestre gauche da música popular brasileira dos últimos 50 anos.

Cotação: Ótimo