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Cultura Música

Juçara Marçal, uma cantora a salvo de vaidades

Exaltada por não procurar destaque individual, artista lança álbum contundente que é resultado de seleção cuidadosa
Cantora Juçara Marçal Foto: Pablo Saborido / Agência O Globo
Cantora Juçara Marçal Foto: Pablo Saborido / Agência O Globo

Juçara Marçal poderia ser reconhecida como uma grande cantora de samba ou de algum outro gênero. Prefere, porém, ser muitas. Integrante de um núcleo de São Paulo que se divide em projetos bem diferentes entre si, ela não prioriza os trabalhos solo. Está, aos 59 anos, lançando nas plataformas apenas o segundo álbum com o seu nome em destaque, “Delta Estácio blues”.

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Sob um olhar pragmático, seria melhor se apostasse um pouco mais na carreira individual.

— Se eu me preocupasse com isso, sim — reconhece e desdenha.

Sem soluções fáceis

Mais do que facilitar, ela gosta de experimentar. O que une o repertório diverso de “Delta Estácio blues” é todas as 11 faixas terem partido de bases sem “cadências harmônicas”, como ressalta.

— São samples, efeitos, riffs, pequenas coisas depois montadas pelo software. É um procedimento novo para fazer canção. No rap é mais usual.

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Dito assim, pode parecer algo frio, criado em computador. A faixa escolhida como single, “Crash” (de Rodrigo Ogi e Kiko Dinucci), desmonta a aparência. A música é quente e de refrão sem sutilezas: “Eu faço tudo pra não entrar numa guerra/ Mas, se entrar, não vou parar de guerrear/ Ninguém mandou você me aperrear/ Vai tomar madeirada”.

— O disco é fruto desse momento em que a gente vem vivendo no país nos últimos anos. Essa coisa mais revoltosa tem a ver com a necessidade de ir às vias de fato, dar madeirada — afirma.

Concebido aos poucos desde 2017, o álbum seria gravado em 2020. Veio a pandemia e a cantora perdeu a força. Recuperou o ânimo em novembro passado, quando o projeto foi aprovado no edital da Natura Musical. Entraram os recursos para pagar os envolvidos e um prazo a ser cumprido.

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Em “esquema pandêmico”, como diz, com máscaras e distanciamento, Juçara começou a trabalhar com Kiko Dinucci. Moram no mesmo prédio — ela no quarto andar, ele no segundo. Ele é o produtor, programador, guitarrista etc. etc. do trabalho. Os dois se consideram irmãos e já dividiram muitos palcos e estúdios.

— Quase todas as músicas surgiram das bases. Convidávamos amigos para compor em cima delas. Mesmo as quatro que já existiam passaram pelo processo — conta Juçara.

As quatro são “Vi de relance a coroa” (Siba Veloso), “Ladra” (Tulipa Ruiz), “Oi, Cat” (Tantão e os Fita) e “La femme à barbe” (Brigitte Fontaine e outros três autores), cantada em francês. Além de Ogi, os amigos convidados são Rodrigo Campos (faixa-título, que une o bluesman Roberto Johnson aos sambistas pioneiros do Estácio), Negro Leo (“Sem cais”), Douglas Germano (“Corpus Christi”), Maria Beraldo (“Baleia”) e Fernando Catatau (“Lembranças que guardei”). E quatro faixas ficaram para um futuro EP

— Elas tinham outro ethos. E eu queria que o disco fosse curto e grosso — diz sobre o resultado de 38 minutos.

Metá Metá e cia.

Depois de muitos projetos, Juçara lançou o seu “Encarnado” em 2014. Emendou outros projetos, sempre sem o nome sozinho nas capas. Com o Metá Metá (ela, Kiko e Thiago França), fez a trilha do balé “Gira”, do Grupo Corpo, em 2017. É a voz feminina que predomina no núcleo que tem, entre outros, o cantor e compositor Romulo Fróes. Ele destaca como “ela se metamorfoseia às canções que interpreta” e não se põe à frente do arranjo e de outros elementos.

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— Além de exibir a sua versatilidade, esse comportamento demonstra uma profunda inteligência artística, a salvo de vaidades e exibicionismos vazios. Ao se equiparar à canção, a Juçara se engrandece, torna-se maior do que o repertório.

A artista nasceu em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e aos 8 anos foi para São Caetano do Sul, depois São Sebastião, até se mudar para a capital paulista. Formou-se em Jornalismo e Letras (literatura brasileira, com mestrado sobre Pedro Nava). Em faculdade privada, deu aulas de português, canto e locução. Só em 2015, graças a um dos prêmios conquistados por “Encarnado”, pôde se dedicar apenas à música. Parte de seu trabalho é marcada pelo antirracismo e pelas religiões de matriz africana.

— Não sou iniciada no candomblé, mas é o jeito de ver o mundo que, para mim, funciona.

Ao lado de Kiko, ela passará novembro e dezembro na Europa, numa viagem de 33 shows.