Cultura Música

Mano Brown se une a Naldo Benny em novo disco do funkeiro

Em busca de liberdade, o líder dos Racionais MC´s desafia o rap em '#Sarniô'

Juntos. Naldo Benny (à esquerda) e Mano Brown gravaram clipe em São Paulo e no Rio.
Foto:
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Fabio Seixo
Juntos. Naldo Benny (à esquerda) e Mano Brown gravaram clipe em São Paulo e no Rio. Foto: / Fabio Seixo

RIO - Os Racionais MC's costumam se apresentar como os "quatro pretos mais perigosos do Brasil". Em um inesperado encontro, o líder do grupo, Mano Brown, juntou-se a Naldo Benny para participar do mais recente disco do funkeiro carioca, "#Sarniô". Depois de um passeio a bordo de um BMW, o rapper paulistano encontrou um jeito semelhante para definir a parceria: "Dois pretos num BM: Benny e Brown, Brown e Benny". Somada à ostentação, a aproximação com um nome abertamente pop irritou a ala fundamentalista do mundo do rap.

“Os caras (que criticam) são carcereiros, eu sou ladrão. Pulo o muro e vou embora. Gravei com o Naldo e 'roubei a brisa' deles”

Mano Brown
Rapper

No Rio para a gravação do clipe de "Benny e Brown", o rapper se mostrou incomodado com as amarras impostas a ele. Ao lado de Benny, disse que a parceria foi um movimento planejado. Louvar a dolce vita em uma canção dançante foi o caminho encontrado para dar um grito de liberdade.

— Como o público do Racionais ficou muito careta, muito engessado, tenho que fazer por fora. Sou obrigado a fazer. Não que eu queira quebrar o grupo ou sair dele — diz, enquanto come um bife à cavalo do Nova Capela. — Esse movimento careta não me agrada. Quando comecei a fazer essa porra, fiz para ter liberdade. Não para ser carcereiro de ninguém. Os caras (que criticam) são carcereiros, eu sou ladrão. Pulo o muro e vou embora. Gravei com o Naldo e "roubei a brisa" deles. Não sabem nem o que falar.

Brown e Benny vão celebrar esta união na próxima quinta-feira, no Barra Music. O encontro entre rap e funk começou a ser gestado em 2013, quando os músicos se encontraram em um saguão de hotel às vésperas do festival Planeta Atlântida, em Florianópolis. Benny, que na época colhia os frutos do megahit "Amor de chocolate", fez as vezes de fã e foi tietar Brown. Fez até o líder dos Racionais conversar com o filho no celular.

Algum tempo depois, encontraram-se antes de um show do grupo paulistano no Rio, na época do lançamento do disco "Cores & valores". A amizade se fortaleceu, e a proposta para uma parceria foi inevitável. Alguns passeios de BMW depois, estavam em estúdio para a gravação de "Benny e Brown". O anúncio foi feito em uma foto no Instagram: com os dois encostados em um carro esportivo. A reação negativa dos fãs foi imediata. Por outro lado, Benny admite que se surpreendeu com a recepção positiva do rapper.

— Como todo moleque da favela, sempre admirei os Racionais. Tinha camisa, boné, ia aos shows — diz Benny. — Fiz o convite, mas fiquei chocado quando ele aceitou. O Brown vestiu a camisa. É algo histórico.

Para o clipe, Brown levou Benny ao Capão Redondo, comunidade pobre no extremo sul de São Paulo. Em sua terra natal, escolheu três de seus lugares preferidos para filmar a parte paulistana do clipe, que também contou com um passeio de carro (sempre de "BM") pela Avenida Paulista.

Naldo, por sua vez, levou o amigo para filmar na Vila do Pinheiro, no conjunto de favelas da Maré, onde nasceu e se criou. A ponte aérea entre Rio e São Paulo, feita através da música, foi a maneira encontrada por eles para celebrar a união entre o rap e funk.

“Não sou Deus, eu sou o Brown. Não quero virar busto, quero é dinheiro. Não quero bandeira com a minha cara, quero a minha cota em euro”

Mano Brown
Rapper

Embora as circunstâncias transformem o encontro em algo marcante e - por que não? - histórico, os dois músicos garantem que os gêneros guardam mais semelhanças do que um olhar apressado pode supor. Cultuados nas periferias das duas maiores cidades brasileiras, os ritmos têm as mesmas influências. Para Brown, os dois dividem a mesma árvore genealógica. Benny concorda:

— A gente, do funk, tem o hip-hop como inspiração. É um alto falante político, um soco na cara. O hip-hop é o grito e o funk é mais solto.

Brown retribuiu os elogios, mas volta a reclamar do mundo do rap:

— O funk é revolucionário. Doa a quem doer — diz. — Tem libertinagem, mas tem liberdade. É uma coisa que o hip-hop começou a tirar das pessoas. Ao contrário do funk, o hip-hop hoje tem uma bíblia de regras que um jovem não aceita. O jovem quer ultrajar. Quando o funk chegou a São Paulo, falei para os rappers: "Vocês vão ficar para trás, estão escrevendo música para a minha avó ouvir".

Quando as palavras saem da boca de Brown, parecem prontas para virar um verso de alguma de suas composições. Ao associar as origens de funk e rap, ele encontra rapidamente mais uma similaridade. Mesmo extremamente populares no morro e no asfalto, os músicos dos dois gêneros não são tidos como representantes da música brasileira. Mas eles tampouco são encarados como embaixadores de ritmos internacionais.

— É uma música sem pátria. Não somos americanos, mas também não fazemos um som identificado como brasileiro — defende Brown, que segue para o ataque. — Mas tudo bem. Vivemos num mundo à parte. A favela é um país a parte. Para mim não faz diferença ter pátria. Meu bisavô foi escravo disso aqui, não sou patriota.

Mesmo chateado com a velha guarda do hip-hop, Brown cita nomes como Rael e Emicida para dizer que o ritmo pode se renovar e derrubar antigos preceitos internos. Brown se coloca ao lado da nova geração para dizer que eles representam a continuidade.

'Benny e Brown' é a primeira parceria da dupla Foto: Fabio Seixo / Agência O Globo
'Benny e Brown' é a primeira parceria da dupla Foto: Fabio Seixo / Agência O Globo

Benny acredita que o mundo do funk, apesar de ter menos patrulhas, compartilha um defeito com o do rap. Quando elevou seu cachê após o sucesso de “Amor de chocolate”, ouviu críticas de gente do meio. Nos bastidores, conta-se que, ali, ele passou a cobrar R$ 120 mil por apresentação. Para os críticos, estaria perdendo a essência, sendo ganancioso demais.

— É uma hipocrisia gigante. Contratantes e colegas vieram falar mal de mim. Com atitudes como essa, acho que o funk dá um tiro no próprio pé.

Brown conta que ouve com frequência comentários do tipo, e desabafa. Para ele, ganhar dinheiro não é um pecado:

— É religião? Hoje em dia, vendem até Jesus. Por que não posso vender rap? — diz, fazendo referência a um verso de Emicida. — Não sou Deus, eu sou o Brown. Não quero virar busto, quero é dinheiro. Não quero bandeira com a minha cara, quero a minha cota em euro.

RELAÇÃO COM ROMERO BRITTO

Com a parceria, funkeiro e rapper viram as críticas surgirem dos lados mais inesperados. Sobrou até para Romero Britto, artista plástico que assina a capa de “#Sarniô” e é elogiado com um verso pelo funkeiro carioca em “Benny e Brown”. Amigo do pintor, ele diz que já previa o rebuliço quando decidiu pela ilustração:

— A polêmica sempre vai existir. O Romero Britto é um artista que sempre admirei e é o maior sangue bom — argumenta o cantor, que conheceu o pintor quando viajou aos EUA. — Lá fora, eles admiram gente como ele. Aqui, criticam quem faz sucesso. No Brasil, falam mal até do Pelé.

Brown, por outro lado, diz que nunca havia ouvido falar no trabalho do artista pernambucano radicado em Miami:

— Vieram me encher o saco e eu disse que nem sei quem ele é. Não sou um bom entendedor de arte, fora música. Quando sou ignorante em um assunto, não dou nenhuma opinião. Não falo do que eu não sei.

A abertura lenta, gradual e segura dos Racionais em direção ao showbiz não é nova. Edi Rock, parceiro de Brown em músicas históricas como “Negro drama”, já tinha recebido Seu Jorge no disco solo “Contra nós ninguém será”, de 2013.

Brown também planeja um álbum só para si, mas — ao contrário do trabalho do colega de banda —, pretende investir em canções mais românticas. Ele tem por nomes como Jorge Benjor e Marvin Gaye imensa admiração, e pretende levar o álbum, ainda sem nome, por este caminho. O rapper alimenta o projeto há oito anos, e tem cerca de 40 novas canções prontas.

— Não sou um cara frustrado por não ter tido carreira solo — garante. — Vou botar no disco as coisas que gosto de ouvir. Não que eu seja conservador nesse sentido, mas esses caras foram professores. E muita gente ainda não analisou a aula deles.

A mudança de estratégia dos Racionais passa um pouco por Eliane Dias, mulher de Brown. Em 2012, ela assumiu a produtora do grupo e passou a dar as cartas do ponto de vista comercial, enfrentando um pouco de resistência dos MCs. Brown diz que apoiou a iniciativa, mas encara a relutância como uma coisa natural.

— Os Racionais atuavam com um comportamento de gangue até o ano passado. Ninguém assinava papel nenhum. Fomos processados por 300 safados — argumenta Brown. — Nunca ligamos para empresa. Chegou uma época em que tudo estava errado. Ela tomou a frente. Não é que tivemos resistência, mas não estávamos acostumados. Não tínhamos nenhum papel que prestasse. Cumpríamos nossa palavra e os outros traíam.