Cultura Música

Marca autoral: um olhar sobre a discografia de Maria Bethânia

Uma análise do repertório e das escolhas que ajudaram a transformar a cantora na intérprete de mais personalidade do país

'Maria Bethânia', 1965

Capa do disco 'Maria Bethânia', de 1965 Foto: Reprodução
Capa do disco 'Maria Bethânia', de 1965 Foto: Reprodução

Com apenas 18 anos, ela parecia já ter certeza do que queria em sua carreira, trazendo temas adultos: “Carcará”, Noel Rosa, Era do Rádio, Batatinha, o lançamento do mano Caetano como autor e de Gal com cantora e até cantiga de ninar. Tudo com uma marca autoral tão forte que foi saudado pelo maior crítico da época, Sylvio Tulio Cardoso, em O GLOBO, como “o maior disco vocal de 1965”. Quanto à cantora, considerou-a a melhor intérprete desde a aparição de Maysa, em 1956: “Bethânia é tão diferente, tão exclusiva, tão ela mesma, que não adianta gastarmos dez laudas tentando dar uma ideia ao discófilo de como é a sua voz e seu estilo”.

'Recital na boate barroco', 1968

Depois do início de carreira bombástico, Bethânia se isolou e só voltou a convite de Guilherme Araújo para cantar numa boate de Copacabana o repertório que lhe desse na telha. Mudou sua imagem, com perucas e colares, tirou “Carcará” do repertório e, acompanhada do Terra Trio, mandou ver misturando canções de vanguarda tropicalista com o melhor do cancioneiro brasileiro pré-bossa nova, à época considerado o suprassumo da cafonice.

Rosa dos Ventos, 1971

Das boates, Bethânia passou às grandes temporadas em teatros, dirigida por Fauzi Arap. O registro desse show, embora com som rudimentar e roteiro fragmentado, é “encantado” como diz o subtítulo, com canções identificadas com os quatro elementos básicos do universo: fogo, água, terra e ar, além do “eu-difícil” de cada mortal. Era a primeira vez que dizia poemas num disco. Foi um espetáculo que mudou o conceito de shows de cantores no Brasil, bem teatral, causando catarse do público.

Drama/Drama 3º ato, 1972/73

Produzido por Caetano, de volta do exílio, “Drama” (que significa também “ação” e “teatro”) conta com canções de protesto cheias de metáforas, delícias românticas e resgates da Era do Rádio. O show de lançamento acrescentou inúmeros poemas e canções de diversas épocas, resultando num memorável álbum ao vivo de verve não tanto política, mas com algo existencial e um bocado sensorial, sensual: “Drama 3º ato”.

A cena muda, 1974

A concepção original desse espetáculo era abordar a faca de dois gumes do sucesso, representado pelo ouro e o poder dos alquimistas. Mas seu subtexto político o fez ser um dos shows mais ousados de resistência à ditadura, muito censurado durante a temporada, que chegou ao disco em primoroso registro ao vivo, com músicas de letras recitativas, cheias de adjetivos hiperbólicos e metáforas, cantada de forma bem exagerada, como convinha aos ânimos exaltados da época: “Gás neon”, “10 bilhões de neurônios”, “Demoníaca”, “Midas”...

Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo, 1975

Para comemorar 10 anos de carreira, a Philips lhe deu o que ela quis de presente: “Um disco com Chico Buarque”. Naquela altura, ela já podia ser considerada a melhor intérprete do compositor (no ano seguinte, “Olhos nos olhos” foi sua primeira gravação a fazer sucesso nacional, levando sua voz às rádios AM). Mas ela também imprime sua marca em joias de autores diversos. De “Foi assim” e “A camisola do dia” a “Cobras e lagartos” e até “Gïta”.

Pássaro da Manhã, 1977

Um disco delicado, porém intenso, que trata de amor, esperança e liberdade. O primeiro em estúdio em que intercala poemas e músicas, com o melhor de Chico, Caetano, Gonzaguinha e da Era do Rádio, incluindo um texto-tributo de sua própria autoria à sua musa, Dalva de Oliveira. Musicalmente, consolidava sua parceria com o produtor (e guitarrista) Perinho Albuquerque.

Álibi, 1978

Capa do disco 'Álibi', de Maria Bethânia Foto: Reprodução
Capa do disco 'Álibi', de Maria Bethânia Foto: Reprodução

Com “Álibi”, Bethânia foi a primeira cantora brasileira a atingir a marca de 1 milhão de LPs vendidos (800 mil só no primeiro ano), munida de um repertório irresistível que caiu no gosto do público, com novidades como “Explode coração”, “O meu amor”, “Sonho meu” e a faixa-título, de um Djavan iniciante, além de recriações de “Negue” e “Ronda”. Muito romântica.

Mel, 1979

Na linha do LP anterior, lançou músicas maravilhosas, vendeu mais de 800 mil cópias com elas (“Mel”, “Da cor brasileira”, “Cheiro de amor”, “Grito de alerta”, “Infinito desejo”, “Ela e eu”) e ainda lançou Angela Ro Ro (“Gota de sangue”).

Talismã, 1980

Fechando uma trilogia romântica visceral e de grande apelo popular, esse LP traz também canções existenciais e místicas fortes do mano Caetano, recria sambas-canções e boleros da década de 1950 e ainda lança o antológico samba de Dona Ivone Lara “Alguém me avisou”.

Ciclo, 1983

Na contramão da parafernália eletrônica que dominava a MPB de então, Bethânia radicalizou e realizou um disco intimista e acústico, dez anos antes de isso virar modismo. Ainda emplacou o sucesso “Fogueira”.

Dezembros, 1986

Após 14 anos na Philips, Bethânia estreou na RCA com um disco de fôlego mais comercial, uma superprodução turbinada por Caetano e Guto Graça Mello que emplacou canções em trilhas de novelas, lançou (com letra de Chico Buarque) o bolero “Anos dourados”, de Tom, conhecido apenas na versão instrumental do seriado homônimo, e obteve sucesso com a toada “Gostoso demais”, de Dominguinhos e Nando Cordel.

As canções que você fez pra mim, 1993

Depois de uma série de discos com ênfase em arranjos mais acústicos ou conceituais, Bethânia volta ao popular com uma seleção arrebatadora de Roberto & Erasmo, com a sorte de ter os arranjos de cordas feitos por um maestro estrangeiro que não tinha qualquer vínculo afetivo com as canções do Rei (Graham Preskett).

Âmbar/Imitação da vida, 1996/97

Foi a partir de “Âmbar” que Bethânia renovou seu repertório com canções da chamada nova MPB, de Chico César, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Adriana Calcanhotto. O belo CD de estúdio (talvez o mais caro da cantora, com o melhor som, gravado em sete estúdios diferentes e mixado em outros três) virou um memorável espetáculo lançado em CD duplo, “Imitação da vida”, de pegada existencial e muita poesia, que trouxe Fernando Pessoa para as FMs, com o poema “Cartas de amor”, intercalado com o velho samba-canção “Mensagem”, sucesso de Isaurinha Garcia.

CD/DVD Brasileirinho, 2003/04

A partir de 2002, Bethânia assinou com a Biscoito Fino, radicalizando ainda mais sua marca autoral. A maioria de seus discos/shows tiveram formato bastante acústico, com arranjos de Jaime Alem, que vinha trabalhando com ela desde os anos 1980, e ênfase nas canções que remetem às suas raízes santo-amarenses/sertanejas, na busca de um Brasil mais profundo e original. Esse CD de estúdio, bem como o show antológico que realizou para lançá-lo (disponível em DVD), foram possivelmente seus trabalhos mais completos dentro dessa sua nova fase, ainda mais independente.

*Rodrigo Faour é jornalista, produtor e historiador de MPB