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Maria Gadú estreia turnê após dois anos afastada: 'Eu tava cansada de mim, não do palco'

Na pausa dos shows, ela se dedicou à causa indígena, a cuidar de sua depressão e à gravação de dois discos
Maria Gadu: 'Podem me chamar de utópica, haribô da MPB homossexual (risos)... Mas acredito num despertar' Foto: GABRIEL MONTEIRO / Agência O Globo
Maria Gadu: 'Podem me chamar de utópica, haribô da MPB homossexual (risos)... Mas acredito num despertar' Foto: GABRIEL MONTEIRO / Agência O Globo

RIO - Para os indígenas, o tempo é outro, Maria Gadú explica — descalça, no terraço de sua casa em São Conrado, vista pra pedra, pra praia, pro mato. Entre os indígenas, há músicas lindas que duram dez horas, ela conta, longe do limite padrão entre 3 e 4 minutos da canção popular. Noutro momento, afirma que uma visita a uma aldeia que vislumbre algum conhecimento real não segue a lógica de taxímetro do turismo — dura pelo menos de uma semana.

Gadú tem raízes indígenas — que vêm da família do pai — e se aproximou enormemente da causa nos últimos anos. Pelo sangue e pelo coração, portanto, a cantora de 32 anos vestiu essa noção de tempo dos povos nativos do país nos últimos dois anos — na pausa que deu em sua carreira, depois de seu último show, em 2017, em Manaus, cercada da floresta amazônica. Agora ela volta, com uma turnê que celebra seus 20 anos de carreira, tocando suas músicas com os arranjos originais — a estreia é nesta sexta (2 de agosto), no Circo Voador. No período, imersa em outra lógica temporal, gravou dois álbuns: um comemorativo, que olha para a trilha caminhada até aqui, a sair até o fim do ano; e outro, de inéditas, para 2020. Sua parada, porém, não foi movida pela vontade pragmática de fazer discos.

— Fiquei dois anos em turnê com “Guelã” (seu disco anterior, que traz no título a palavra “gaivota” numa das 274 línguas indígenas do Brasil, ele ressalta o número para chamar a atenção para um dos aspectos da riqueza ignorada dessas culturas) . Queria ouvir outras coisas — lembra Gadú. — Também queria espaço para estudar mais a fundo antropologia, que estudo desde 2014. Porque a história eurocentrista do Brasil não conta nossa história, minha origem indígena. E só tem um jeito de se aproximar da causa indigenista, de estudar isso: indo. E isso demanda outra relação com o tempo.

“Nunca desmarquei nenhuma apresentação. Criei uma relação com o palco que faz com que eu trate aquele compromisso como inadiável. É muito bonito a tua profissão ser um ato de comunhão. Saio de casa com a mesma intenção de quem comprou ingresso. ”

Maria Gadú
Cantora

A pausa também foi importante para que ela cuidasse da depressão, que deu seus primeiros sinais em 2014.

— Eu comecei a lidar muito mal com o que vinha de fora, tudo me abalava muito — conta a compositora. — Não tava me sentindo pronta pra fazer isso que tô fazendo agora ( turnê, discos ). Eu precisava estar mais preparada. Durante a turnê, já fui direto do hospital fazer show.

A artista faz questão de dizer, porém, que nunca deixou que nada interferisse na sua agenda de shows:

— Nunca desmarquei apresentação. Criei uma relação com o palco que faz com que eu trate aquele compromisso como inadiável. Não tenho como mandar atestado. É muito bonito a tua profissão ser um ato de comunhão. Saio de casa com a mesma intenção de quem comprou ingresso. Não parei por cansaço do palco. Eu tava cansada de mim, não do palco.

“O disco é o primeiro que faço pensado como álbum, em cima de um assunto. Tem línguas brasileiras, tem melodias indígenas, coisas que aprendi nas aldeias.”

Maria Gadú
Cantora

Seu próximo disco de inéditas — ela não revela o título nem o número de faixas (“quando você souber vai fazer sentido eu não querer contar”, explica) — traz muito de sua proximidade com a História dos povos nativos, que a rigor é parte fundamental da História do Brasil. O primeiro vislumbre do disco aparece no clipe de “Mundo líquido”, gravado na Amazônia:

— O disco é o primeiro que faço pensado como álbum, em cima de um assunto. Tem línguas brasileiras, tem melodias indígenas, coisas que aprendi nas aldeias. Porque muitos escolhem não ter empatia com o indígena, não querer entender ou saber. É uma escolha, já que há livros de Davi Kopenawa, por exemplo, na Livraria da Travessa, ao alcance de quem quiser, e Sônia Guajajara foi candidata a vice-presidente (na chapa de Guilherme Boulos) , é uma personagem da política nacional. Mas o indígena está aberto a isso, ele te pega pela mão quando você vai até ele: “Você não pega a minha mão, mas eu pego a sua”. Não tem a postura acusatória: “Onde você estava enquanto meu povo sofria etc.”.

Gadú, porém, sabe que a militância e a música popular têm interseções, mas ocupam espaços sociais diferentes. Fã de Caetano Veloso, com quem fez turnê que rendeu um CD e DVD ao vivo, ela cita o baiano como alguém que “em canções palatáveis, conseguiu popularizar a intelectualidade, transmitir conhecimento". É o lugar onde ela mira:

— Tenho a a responsabilidade de ser um veículo para ideias importantes. Mas ao mesmo tempo a canção é um alento para a população cansada, triste, que precisa recarregar. Eu mesmo muitas vezes quero ouvir música para recarregar, para não pensar em mais nada. É uma conta que faço, até onde vou morder para que eu assopre. Não quero ser a chata que vai só dizer coisas que as pessoas não querem ouvir. Quero criar empatia para essas causas, essas pessoas, e não acho que essa seja a melhor forma de fazer isso. Não vou atrair atenção para as coisas apontando o dedo na cara de ninguém.

Gadú lembra o exemplo de “Tic tic tac", do grupo amazonense Carrapicho, hit nacional dos anos 1990, que ela vinha tocando em seus shows.

— Eu toco de um jeito que eu vejo na cara das pessoas que elas estão entendendo a letra pela primeira vez: “As barrancas de terras caídas/ Faz barrento o nosso rio mar/ Amazonas rio da minha vida/ Imagem tão linda/ Que meu Deus criou/ Fez o céu, a mata e a terra/ Uniu os caboclos/ Construiu o amor”. Elas pensam: “Ah, então não era só a coreografia” — diz, imitando os movimentos da dança. — A empatia vem daí.

A postura bélica e acusatória das redes sociais é vista por Gadú exatamente como o oposto do que ela quer para sua música e sua vida:

— Se a gente quer uma democracia não pode julgar quem não se compromete. Quando começa esse blá-blá-blá de “fulano não está se engajando”, eu pergunto: “mas por que você também está no sofá?”. Não consigo fazer essa análise católica da vida, de julgamento, culpa, penitência.

O cenário da música brasileira hoje, acredita Gadú, ajuda a aliviar — ou ao menos dividir — responsabilidades:

— Há uma representatividade maior, as pessoas estão defendendo suas próprias pautas. Não é como antes, que poucos tinham acesso à voz, então tinham que carregar as demandas de todos. Hoje temos Liniker, Emicida, Iza, o Slam das Mina, cantoras homossexuais como eu, todos com suas funções sociais e afetivas. Os assuntos ficam mais poderosos e, mais do que isso, tudo fica mais rico, porque cada assunto tem sua subjetividade sonora específica. Não é só letra.

Na visão de Gadú, porém, a questão indígena talvez seja a mais urgente hoje, por conta de sua relação intrínseca com a preservação do meio ambiente:

— Se não se discutir isso, não vamos discutir coisa nenhuma, porque não poderemos respirar — argumenta Gadú, que acredita que, depois das questões de gênero terem ganhado evidência, a próxima onda do ativismo será a indígena. — O Yby, primeiro festival de música indígena, que acontece em novembro em São Paulo, é mostra disso. Ou trabalhos como o da ( rapper indígena ) Katú Mirim, que está gravando.

Apesar de achar que o momento brasileiro é ruim (“Quem tá bem tá todo cagado”, diz), ela acredita no futuro:

— Vai piorar ainda, mas vai ter um despertar. Muitas pautas foram levantadas. Podem me chamar de utópica, haribô da MPB homossexual ( risos )... Mas acredito num despertar.