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Cultura Música

MC Kevin: As inquietações de um jovem em linhas musicais

Sucesso de MC Kevin reflete evolução de um gênero que surgiu nos anos 1980 e frutificou em São Paulo, com DJs e compositores se apropriando do legado carioca
MC Kevin: funkeiro ajudou a popularizar em São Paulo gênero surgido no Rio Foto: Divulgação
MC Kevin: funkeiro ajudou a popularizar em São Paulo gênero surgido no Rio Foto: Divulgação

MC Kevin morreu na noite de 16 de maio. No dia seguinte, na imprensa, a ficha criminal do indivíduo deu vez a panoramas de obra e vida. O presidente da República ofereceu condolências. Todavia, em “Minha última música”, um de seus últimos trabalhos, o MC contrapõe a si mesmo, “bom samaro inteligente”, um líder falho:

“Cadê sua dignidade, velho soldado covarde
Que não foi sujeito homem
E muito menos foi de verdade?”

O uso da forma reduzida de “samaritano” aproxima sonoramente o MC do mandatário. Porque “falar que funk é crime, pro governo é concorrente” e ambos se valem do mesmo meio: “Vamos invadir sua casa pelo Whats, pela tela, pode ser, caralho, ou até falando mal!”. Como chegamos aí?

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O “mundo funk” abarca divergências geracionais, estéticas, de produção, circulação e hierarquia. A literatura sobre o gênero divide sua história em quatro períodos: os anos 1980, de formação; os anos 1990, de nacionalização; a primeira década dos anos 2000, de radicalização; e os anos 2010, de reinvenção. Existem três níveis de circulação: um mainstream, associado à mídia corporativa; o underground dos fluxos e bailes de favela; e um mainstreamed, de cujos monopólios digitais Kevin procurava se libertar. A vitalidade do gênero depende de inovações do underground, processadas por um mainstreamed e incorporadas ou não pelo mainstream. Essa engrenagem é impulsionada por artistas geralmente muito jovens e muito pobres em busca de realização.

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O desenvolvimento musical do funk carioca não se separa da história de sua repressão pelo Estado. Ao final dos anos 1990, o fechamento de vários bailes em clubes de subúrbio transferiu o epicentro do gênero para as comunidades e, junto com a nova batida, o tamborzão, contribuiu para sua radicalização, manifesta em dois subgêneros: a putaria e o proibidão. CDs domésticos, plataformas P2P, compartilhamento em nuvem, flogs, blogs e redes sociais permitiram a distribuição relativamente independente. A primeira década do milênio assistiu ao cerceamento dos bailes de comunidade pela implantação de UPPs. Apesar das possibilidades de monetização, o funk no Rio ainda sofre as consequências da perseguição a esse celeiro de carreiras em desenvolvimento e habilidades em formação que são os bailes de favela. A partir de 2010, as atenções se deslocam para São Paulo, onde DJs, compositores e MCs se apropriam do legado carioca, impulsionados por monopólios digitais emergentes, com modos próprios de filtragem, exploração e normatização.

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Os últimos trabalhos de Kevin apresentam as inquietações de um jovem criado em tempo de “inclusão pelo consumo” cuja carreira se aproxima de seu apogeu em tempo de pauperização. Sua mãe se preocupava: “Kevin vive na velocidade da luz!” Ele queria parar: “Tô só pedindo um tempo pra minha vida repensar.”

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“Minha última música”, trap-funk cujos excertos aparecem lá no início, música e letra do intérprete, tem produção musical dos DJs Luan MPC e Glenner, e foi lançada no canal de YouTube MC Kevin Oficial em primeiro de abril de 2021.

* Carlos Palombini é professor de Musicologia da UFMG, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e Ph.D. em Música da Universidade de Durham