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'Melhor percussionista do mundo', Naná Vasconcelos morre aos 71

Pernambucano estava hospitalizado em Recife por conta de um câncer de pulmão
Naná Vasconcelos em foto de 2011 Foto: Divulgação
Naná Vasconcelos em foto de 2011 Foto: Divulgação

RIO - “Para mim, a música mais difícil é o silêncio”, dizia o percussionista Naná Vasconcelos, nas inúmeras vezes em que era questionado sobre sua extraordinária capacidade de extrair ritmos das texturas do mundo.

Perto dele, porém, não fazia silêncio.

Juvenal de Holanda Vasconcelos nasceu no Recife no dia 2 de agosto de 1944 e desde menino corria entre os tambores do maracatu. Começou a tocar profissionalmente aos 12 anos com o pai, e desde então já foi apontado oito vezes como o melhor percussionista do mundo pela revista especializada “Down Beat”.

Marcos Suzano lembra um episódio que sintetiza essa forma como Naná via a música. Em meio à tensão da gravação do álbum “Sementeira”, de 2010 (que reunia, além dos dois, Caíto Marcondes e o grupo Coração Quiáltera), o pernambucano entrou no estúdio e disse para seus colegas: “Vamos fazer uma música só com risada?”. Perplexos e animados, eles embarcam no jogo rítmico das gargalhadas e gravam a faixa “Nada mais sério”. A liberdade da ideia, arrematada com o título que deixa claro que não se trata de uma brincadeira vulgar, era puro Naná.

— Foi um dos momentos em que pensei: “Esse cara veio numa nave, não cumpriu o ritual do ser humano” — diz Suzano, lembrando como Naná tocava seu berimbau e mesmo seu próprio corpo. — Até o jeito de falar dele tinha ritmo. Não passava por sua cabeça a ideia “isso aqui é um instrumento, vamos tocar esse ritmo tal”. Era maior, era a música em estado puro. Ele era uma antena.

Suzano ecoa a percepção, que Naná provocava por onde passava, de que havia algo em sua música que transcendia o humano e se relacionava diretamente com o espírito e a natureza. Otto, que escreveu o verso “o celular de Naná é a lua”, o qualifica como “um encantado”:

— Era um mestre dos ritmos, um mago, o rei dos reis. Pernambuco chora essa perda, mas sei também que ele agora vai reger ainda mais a gente e a nossa nova geração. Hoje, as nações africanas estão cultuando nosso guerreiro chefe.

Em 1980, o jornalista e produtor Nelson Motta disse sobre um show de Naná com Egberto Gismonti, em Nova York: “Raro encontrar em um percussionista a delicadeza, mesmo entre os bons percussionistas. Não há que esmurrar os couros, nem que esganar os chocalhos: a percussão de Naná é viva, intensa, ágil — e no entanto não emanava de nenhuma força bruta, física apenas, ela tinha a delicadeza que o diferencia”. Foi com Egberto que Naná fez um dos álbuns mais marcantes de sua discografia, “Dança das cabeças” (1976) — em 1984, eles voltaram a trabalhar juntos em “Duas vozes”.

Apesar de acreditar que “o Brasil é o único país em que a música faz parte da vida”, Naná viveu no exterior por mais de 20 anos a partir de 1967, com algumas passagens pela terra natal. Morou na França e nos Estados Unidos, onde participou das banda de Jon Hassel, Pat Metheny, Evelyn Glennie, Jan Garbarek e gravou mais de uma dezena de álbuns. Entre 1978 e 1982, fundou o grupo de jazz Codona, que lançou três discos.

— Nunca americanizei meu trabalho, apesar de tocar com os mais diferentes músicos, do rock às orquestras sinfônicas — disse ao GLOBO em 1986.

Trabalho com crianças

No Brasil, Naná gravou com Caetano Veloso e Milton Nascimento, entre os principais nomes da MPB. Todo ano, era ele quem abria o carnaval do Recife, à frente de um grupo de 500 ritmistas de maracatu que se apresentam no Marco Zero. Também esteve à frente do PercPan, festival que anualmente traz percussionistas de todo o mundo ao Brasil.

“O corpo é o melhor instrumento de percussão”, dizia ele, evocando uma de suas principais referências: Villa-Lobos. Foi com o maestro brasileiro que Naná dizia ter aprendido a ouvir música em toda parte, tanto no próprio corpo quanto nos pregões de feiras livres, nos aboios, nos trens e na voz do vendedor de pamonhas. Além, claro, da caçarola da cozinha de sua mãe, o primeiro instrumento em que batucou.

Um dos aspectos mais comoventes da história do instrumentista é seu fascínio pelo ensino. Naná sempre deu aulas por onde passou, especialmente para crianças, e, havendo a chance, crianças portadoras de deficiências.

— O que me faz trabalhar com crianças é que elas me dão uma grande responsabilidade. Para elas não se pode mentir. São inocentes, aceitam, resistem, questionam. Temos que ser sinceros. Foi o meu trabalho com crianças excepcionais, num hospital na França, que mudou meu equilíbrio na vida e me fez ver tudo de maneira diferente. A partir deles eu passei a ver o meu corpo — disse ao GLOBO em 1988.

Em 2006, o músico foi tema do documentário “Diário de Naná”. Atualmente, promovia dois projetos voltados para crianças: o Língua Mãe, que reúne crianças brasileiras e africanas em orquestras, e o ABC Musical, que apresenta a música a jovens de diversos países.

Naná Vasconcelos morreu ontem, aos 71 anos. Estava internado no hospital Unimed III, em Recife, devido a um câncer de pulmão diagnosticado em agosto de 2015. Apesar da doença, seguiu ativo nos últimos meses. Em fevereiro, fez a tradicional apresentação de abertura do carnaval do Recife e, em seu site, constavam algumas datas de shows pela Ásia, em abril, ao lado do pianista, violonista e compositor Egberto Gismonti.

— O que realmente tem significado, mais do que discos ou shows a fazer, é a perda desse grande amigo — lamentou o parceiro.