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Crítica: novo livro de Murakami fisga leitores ao trazer espiadelas na vida privada do aclamado autor

Em 'Romancista como vocação', japonês detalha seu processo criativo
Haruki Murakami, escritor japonês Foto: Divulgação
Haruki Murakami, escritor japonês Foto: Divulgação

RIO - Favoritíssimo ao Nobel de Literatura de 2016, Haruki Murakami viu-se preterido por Bob Dylan em uma espécie de “Maracanazo” cult. Mas o escritor que citou Dylan em uma de suas primeiras novelas (“O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo”, sem edição no Brasil) e buscou no cancioneiro beatle o título de seu best-seller “Norwegian wood” (Alfaguara/Objetiva) não está tão distante do bardo americano em teor pop. Ele é dos raros autores contemporâneos “com torcida”, um exército globalizado de leitores ávidos por muito além do que sua ficção revela. O que justifica a existência deste “Romancista como vocação”, mais até do que as reflexões sobre o fazer literário do escritor japonês de 68 anos (sete menos que Dylan), é o interesse por seus gostos, visões de mundo e, claro, vida pessoal.

Não por acaso, a porta de entrada de muitos para a obra de Murakami é um texto de não ficção: “Do que eu falo quando falo sobre corrida” (Ed. Alfaguara), saboroso relato autobiográfico com suas memórias de maratonista e triatleta, lançado originalmente em 2008 — e editado no Brasil em 2010.

Em “Romancista por vocação”, os fãs encontram informações do tipo qual obra foi escrita em laptop e qual foi escrita em caderninho, por que cidades perambulava o escritor ao criar tal trama. Algumas dessas curiosidades se prestam a “lições”, como é o caso do capítulo perdido de “Dance dance dance” (Alfaguara) e encontrado depois que Murakami já o tinha reescrito.

Já os admiradores da artesania literária de seu romance “Kafka à beira-mar” (Alfaguara) — o saudoso Ivan Lessa (1935-2012) estava entre eles — podem encontrar boas pistas sobre algumas escolhas no revelador capítulo “Que tipo de personagens vou criar?”, que invoca santos como F. Scott Fitzgerald, J. D. Salinger, Dostoievski e mesmo Kurt Vonnegut Jr., de passagem.

No percurso umbiguista, não se encontram apenas flores. Nem mesmo os torcedores de Murakami devem vibrar com os comentários sobre o meio literário japonês e o capítulo inteiro dedicado ao mercado editorial, com tedioso desfile de nomes de agentes. Alguns dos conselhos para aspirantes a escritor tropeçam no lugar-comum. Mas é possível peneirar observações com o selo Murakami de qualidade, como a defesa de soluções improvisadas no ato de escrever, comparadas a uma cena do filme “E.T. — O extraterrestre”, em que o alienígena constrói uma engenhoca para se comunicar com seu planeta a partir de pedaços de máquinas velhas.

Agora, o que deve fisgar os leitores mesmo são as espiadelas na vida privada do autor, mais generosas no oitavo capítulo, sobre sua trajetória escolar, e no segundo, que aborda fatos entre os 20 e 30 anos, antes que Murakami se tornasse escritor — e corredor.

Ele se casou cedo e não precisou passar por empregos aviltantes ou subempregos. Optou por empreender a partir de uma de suas obsessões, a música. Montou um modesto clube de jazz, financiado com muita dificuldade à custa de uma rotina espartana de muito trabalho e sacrifícios. “Ouvi coisas terríveis, fizeram coisas terríveis comigo, passei por humilhações”, enumera.

Em “Romancista como vocação”, Murakami diz que inveja os escritores que contam histórias “como água que brota de uma fonte”. “Eu preciso furar a rocha com um cinzel”, compara. Ele escreve dez páginas por dia, “sem desespero”, como definia Karen Blixen, e sem passar desse limite “nem quando inspirado”. O super-homenzinho (até 2007 já havia completado 26 maratonas, sem contar as ultramaratonas e triatlos) de 1,68m revela que a disciplina dos hábitos atléticos o tornou o escritor que é. E brilhantemente brinca sobre o estágio da vida em que começou a correr, 33 anos: “a idade em que Scott Fitzgerald iniciou sua decadência”