Exclusivo para Assinantes
Cultura Música

‘Não quero essa energia horrível nas músicas’, diz Emicida sobre opção de gravar disco só após eleições

Artista ainda roda filme e faz show no Circo Voador mostrando canção recém-lançada na qual ataca críticos
Emicida: 'Se ao me ver num lugar bacana você tiver algum problema com isso, o problema é todo seu' Foto: Caroline Lima / Divulgação
Emicida: 'Se ao me ver num lugar bacana você tiver algum problema com isso, o problema é todo seu' Foto: Caroline Lima / Divulgação

RIO - Inácio da Catingueira foi um escravo que fazia versos. É ele quem dá nome ao single recém-lançado por Emicida (“Era o nome perfeito para sintetizar o que significa vencer no pior dos ambientes tendo a palavra como arma”). Na letra, o rapper — que acaba de lançar um livro infantil (“Amoras”), prepara um filme sobre sua história e a da sua empresa Laboratório Fantasma e faz um show no Circo Voador no dia 2 — ataca quem aponta o dedo para ele. No caminho, faz reflexões tão curtas quanto cortantes sobre o racismo. Ideias que destila nesta entrevista, na qual, em meio à firmeza combativa de suas falas, dá pista do caminho suave de saída dos tempos sombrios: “O próximo disco vai ser uma carta de amor a meus irmãos e irmãs”.

Com quem você está falando em “Inácio da Catingueira”?

Na medida em que nossas vitórias ganham mais espaço surgem problematizações. Comigo aconteceu várias vezes. Desde a história idiota sobre o terno de R$ 15 mil, inventada pelo MBL, até uma que rolou este ano quando pseudoativistas feministas do próprio hip hop inventaram que eu estava vendendo tênis com o nome de Marielle Franco. Eu não tenho expectativa alta nesses MBLs, as características da atuação desses caras são mentira, distorção e descontextualização mesmo. Agora, ver gente de posicionamento progressista atacando um cara preto livre me fez compreender a profundidade da questão racial. Eu mirei essa música em muitos campos, mas diretamente pra pessoas que dizem lutar por coisas parecidas com aquelas por que luto, mas que compram um discurso do que tem de pior no racismo brasileiro. Nisso, as carapuças vão servindo.

Que carapuças?

“Acho compreensível pretos e pobres de direita, assim como ricos de esquerda, só não tenta me colocar nessas caixinhas idiotas que quando você me vir de Havaianas na primeira classe vai ter um troço.”

Emicida
Rapper

A mais engraçada foi um vereador de São Paulo ligado ao MBL, um cara negro que advoga contra políticas e conquistas que inclusive proporcionaram seu direito de estar onde está. Nem tem o nome do cara no som, e ele saiu pistola se ofendendo. O cara ouve “capitão do mato” e já acha que estão falando dele, isso quer dizer muita coisa. Pra finalizar, minha visão é muito mais ampla do que os dois espectros da política comportam. A cor da pele diz muito, mas também pode não dizer nada, esse cara que citei é um exemplo. Acho compreensível pretos e pobres de direita, assim como ricos de esquerda, só não tenta me colocar nessas caixinhas idiotas que quando você me vir de Havaianas na primeira classe vai ter um troço.

O rap era do gueto, se transformou no núcleo do mainstream, depois se tornou o espaço da vanguarda do pop... Para onde vai o rap?

O rap é música do gueto. O fato de você morar numa mansão hoje e ter nascido numa favela não extrai de você a sua origem. Muito pelo contrário, te enriquece. Espero que os artistas tenham solidez e sabedoria para escolher caminhos sustentáveis que os permitam estar aqui daqui a 30 anos. É involuntário ser absorvido pelo mercado e é dentro dessa lógica que conseguimos construir muita coisa foda: São Paulo Fashion Week, documentários, discos, turnês. Mas é importante que os valores do hip hop também influenciem o mercado. É o que fazemos na Laboratório Fantasma, revolução.

Um de seus versos fala que “quem diz que eu vendi minha alma/ descende de quem dizia que eu nem tinha uma”...

Você já viu alguém pôr defeito em comercial de joia com gente branca? Mas o funk ostentação é atacado na direta e tido como algo vazio. Eu transcendi isso faz tempo, mano. Música vende, ponto final. Sempre teve terceiros lucrando, mas sempre os artistas é que precisam explicar que têm fome. Tem duas formas de você lidar com a sua conquista, ou esconde ou ostenta. Pelo meu histórico já dá pra saber qual a minha favorita. Esse pensamento tem raízes profundas na forma como as pessoas estão acostumadas a ver pretos no Brasil. São tão doentes que acham que pobreza e miséria são características da negritude. Como diz o Jay Z, liberdade financeira é minha única esperança. Se ao me ver num lugar bacana você tiver algum problema com isso, o problema é todo seu.

Há no Brasil uma onda de conservadorismo. Bolsonaro afirmou que, se ganhar, vai pôr “ponto final em todos os ativismos”. Muitos o apoiam. Qual é o papel do rap num país assim?

“Vamos entrar em mais um período de ódio e violência institucionalizados oficialmente? Sério? Não aprenderam nada com o genocídio indígena? Com a escravidão? Com a ditadura?”

Emicida
Rapper

Vamos entrar em mais um período de ódio e violência institucionalizados oficialmente? Sério? Não aprenderam nada com o genocídio indígena? Com a escravidão? Com a ditadura? A nossa música responde e faz justiça ao ambiente em que vivemos. Então, assim como nos períodos duros havia pessoas que encontraram formas de cantar contra a opressão, se a coisa piorar isso vai se repetir. Até porque estamos no século XXI, o digital atravessa essa lógica sem pestanejar. O WhatsApp que deu popularidade vira inimigo dele rapidinho. E qualquer um que tenha lido duas páginas sérias sobre geopolítica sabe que o mundo globalizado não lida bem com fronteiras. Isso é um raciocínio infantiloide e autoritário de quem perdeu a carruagem do tempo. Então, ao ficar impossibilitado de lidar com o presente, e ainda mais com o futuro, ele precisa de toda forma apelar para que a volta do passado. O rap nesse contexto vai fazer o que sempre fez, resistir, inspirar e plantar as sementes para que a Humanidade melhore.

Como um filme como “Pantera Negra” afeta o debate da questão racial?

Representatividade é sempre vendida como uma coisa meio ONG, tipo “ajudem esses caras”. O fenômeno do “Pantera Negra” (ver na página 1) diz pro mundo: “essas pessoas existem, estão cansadas de serem estereotipadas e elas gastam dinheiro pra caralho com isso. Vamos perder essa festa reproduzindo faraós loiros ou vamos entender essas pessoas como parte do jogo?” Então a diversidade é para ser defendida também como parte do modelo de negócio. O único lugar onde isso não se reproduz proporcionalmente é no Brasil. No meio dessa eleição nojenta de 2018 estamos vendo que muitos gostam dessa lógica.

Você já delineia algo para o próximo disco?

O próximo disco vai ser uma carta de amor aos meus irmãos e irmãs. Estou trabalhando nele já, começamos sério depois das eleições porque não quero essa energia horrível nas músicas.