Música
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Por Gabriel Trigueiro, Especial Para O GLOBO * — Rio de Janeiro

Caetano Veloso gravou recentemente com o pastor batista Kleber Lucas o louvor “Deus cuida de mim”. Quem não entendeu a aproximação dos dois talvez conheça pouco a obra de ambos e tampouco esteja a par de mudanças sociais que ajudam a entender a parceria.

Como leitor de Mangabeira Unger, Caetano sempre viu a ascensão do evangelismo no Brasil como um fenômeno complexo e ambíguo, e não como um monstro a ser temido.

Há tempos Caetano sinaliza a importância de a esquerda brasileira se engajar com um movimento composto em sua maioria por “pobres e pretos, mas sobretudo pretas pobres”. E sempre criticou aquilo que uma vez chamou de um “preconceito pseudochique” contra os evangélicos.

A luta é a mesma

É compreensível a sua aproximação com Kleber Lucas, uma liderança evangélica vocal contra o governo Bolsonaro. Além de pastor batista e fenômeno gospel com uma carreira de mais de 30 anos, é um intelectual articulado que traça paralelos sobre o pensamento de W. E. B. Du Bois a respeito das black churches dos EUA e as igrejas evangélicas brasileiras de periferia.

Kleber recorda que Du Bois foi pioneiro na discussão sobre a importância social e comunitária das igrejas negras americanas. Elas não forneciam apenas uma conexão com o sagrado, mas também criavam cultura, inventavam formas de resistência política e geravam laços comunais e identidades coletivas de dignidade e pertencimento. Essa é a visão a qual Kleber Lucas se filia. Na Carolina do Sul ou em São Gonçalo, a luta é a mesma.

Caetano e Kleber compreendem o bolsonarismo como um parasita que fez do evangelismo um hospedeiro. A pauta de costumes não teria vingado se não fosse o apoio de lideranças evangélicas e o acesso à estrutura de comunicação das igrejas. Quando Caetano grava um louvor com Kleber Lucas, a mensagem enviada à sociedade é poderosa.

Outro caso interessante é o de Bob Dylan, que teve uma fase cristã que rendeu uma trilogia de discos recebidos com reações que variavam entre o choque e o ceticismo: “Slow train coming” (1979), “Saved” (1980) e “Shot of love” (1981). Na época, o guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards, acusou Dylan de oportunista e o chamou de “profeta do lucro” (“the prophet of profit”).

A relação entre Caetano e Dylan é notável porque ambos têm muito em comum. Além de serem da mesma geração, são dois dos maiores compositores populares em atividade. Caetano já gravou de Bob Dylan “It’s alright, Ma (I’m only bleeding)” e “Jokerman”. São dois sujeitos com uma imaginação literária, complexa, mas imperfeita e muitas vezes contraditória. Mas a beleza de suas criações vem justamente da contradição e da dissonância.

Os dois são intelectuais sofisticados e artistas midiáticos com conhecimento enciclopédico sobre a geração que os antecedeu, mas também sobre artistas contemporâneos. Ambos alternam entre um impulso conservador e radical — conservam, exaltam e até protegem determinadas bases e matrizes da canção popular, mas também muitas vezes adotam uma atitude política radical diante dos guardiões do bom gosto da cultura dominante. Na letra de “Ele me deu um beijo na boca”, do disco “Cores, nomes” (1982), Caetano cantava “E não nos interessa a tripe cristã de Dylan Zimmerman”. De lá pra cá, o jogo virou.

Canção e religiosidade

Caetano e Dylan compreendem que a origem da canção popular está na diáspora africana e num sentido de religiosidade original surgido a partir do encontro dessa diáspora com a religião cristã do colonizador.

Os spirituals e o gospel são a base do blues, que é a base do rock e do jazz e, por que não, do rap. O samba, por sua vez, a principal matriz da música popular brasileira, teve uma trajetória muito particular, mas, à medida que cresce o evangelismo no país, mais se torna importante compreender um universo estético e político, que é complexo e contraditório, mas que está em expansão e fala fundo não somente a grande parte da sociedade brasileira, mas sobretudo à sua parte preta e pobre.

Quem tem medo de que a igreja possa catequizar Caetano não leva em conta a força que o artista tem. O perigo é ele caetanizar os evangélicos.

Gabriel Trigueiro é doutor em História Comparada pela UFRJ e escreve na newsletter "Conforme Solicitado"

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