Música
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Por Antonio Carlos Miguel; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

O título é abrangente, mas “The philosophy of modern song” (“A filosofia da canção moderna”, em tradução livre), editado em novembro pela Simon & Schuster (e ainda não traduzido para o português), é praticamente restrito ao pop anglo-americano no século XX. Entre as 66 gravações escolhidas pelo Nobel de Literatura Bob Dylan em seu novo livro, apenas uma é cantada em outra língua, a italiana “Volare”, enquanto quatro nasceram em outros idiomas, depois ganhando letras em inglês.

O livro não tem prefácio, introdução ou orelha. Dylan não explica o critério para chegar às selecionadas, que são apresentadas sem ordem cronológica, alfabética ou qualitativa.

A sequência é aberta por uma obscura canção country, “Detroit City”, lançada em 1963 por Bobby Bare. Para fechar, um standard, “Where or when”, mas, em tratamento pop, de Dion and The Belmonts, com o vocal doo-wop que imperava em 1959, ano dessa regravação da música de Rodgers & Hart (lançada na Broadway, em 1937).

Na abertura de cada capítulo estão título, intérprete, autor, ano, álbum e gravadora, o que facilita a organização de uma playlist por leitores (já disponível no Spotify). O estilo dos textos também varia. Em alguns, viaja pelo tema da letra, entra na pele dos personagens e faz associações livres, para depois alternar informações sobre gravação e intérprete. Alguns destes, os menos conhecidos, ganham pinceladas biográficas. Outros nem são mencionados. Em “I got a woman”, de Ray Charles (1955), Dylan cria um conto urbano e impressionista. O rádio do carro é ligado a tempo de pegar o solo do sax tenor de Fathead Newman (esta, a única referência à gravação analisada). O motorista tem uma mulher que vive fora da cidade, mas, fugindo ao que a letra conta, pensa na colega de trabalho que parece flertar com ele. Tal descrição pode ser frustrante para quem espera algo sobre o revolucionário Ray Charles.

Procure saber

Para o cantor e compositor John Trudell (“Doesn’t hurt anymore”), sugere que o leitor vá atrás de mais... “Procure por sua música. Um bom lugar pode ser o álbum ‘AKA Grafitti Man’, (...) acompanhado por seu conterrâneo de Oklahoma e irmão de alma Jesse Ed David”.

Sugestão atendida, Trudell tem o rock como base para longas letras, quase faladas. Melhor é a história de tragédia e superação. Da tribo Santee Dakota, Trudell (1949-2015) liderou o movimento Indígenas Unidos de Todas as Tribos. No fim dos anos 1970, a mulher grávida, três filhos e sua sogra morreram num incêndio criminoso — o trailer em que estavam foi trancado e incendiado, enquanto Trudell participava de uma manifestação em Washington.

“Doesn’t hurt anymore”, gravada por Trudell em 2001, é a segunda composição mais recente. A mais nova, de 2003, é “Dirty life and times”, lançada por Warren Zevon no mesmo ano em que morreu, aos 56 anos.

Já a mais antiga, “Nelly was a lady”, foi escrita em 1849 por aquele que é considerado o pai da canção popular nos EUA, Stephen Foster — “Ele está para a música dos EUA como Edgar Allan Poe para a literatura”, compara Dylan. A gravação escolhida é recente, de 2004, pelo cantor negro de blues e folk Alvin Youngblood Hart.

Música não é ciência exata, gêneros se misturam ou, dependendo do arranjo, migram de um ritmo para outro. Mas, quem trafegar pela “Route 66” de Dylan perceberá o predomínio de country (e variações como folk, bluegrass, blues rural) e rock. Somados, esses estilos respondem por 42 das entradas no livro. Era o que o garoto Robert Allen Zimmerman, nascido em 1941, em Duluth, estado de Minnesota, procurava no rádio. Nas restantes 23 (já excluindo a balada italiana “Volare”), alternam-se standards (oito), soul (seis), pop (cinco) e blues & jazz (quatro).

Apenas cinco intérpretes têm direito a duas entradas. Sendo que três destes também são os autores de suas obras: Little Richard em “Tutti frutti” (em letra, como observa Dylan, de até então inédito conteúdo gay e personagens travestis) e “Long tally Sally”; Johnny Cash (“Don’t take your guns to town” e “Big river”); e Willie Nelson (“On the road again” e “Pancho and Lefty”). Ainda tiveram direito a bis Bobby Darin, com “Mack the Knife” (Brecht e Weill) e “Beyond the sea” (Charles Trenet e Jack Lawrence); e Elvis Presley com “Money honey” (Jesse Stone) e “Viva Las Vegas” (Doc Pomus e Mort Shuman).

Entre os inventores do rock ’n’ roll, Little Richard foi quem realmente virou a cabeça e a alma do garoto caipira. Não por acaso, divide a foto na capa do livro com dois artistas dos anos 1950, estes, sem lugar entre os 66 selecionados: Eddie Cochran (morto em 1960, aos 21 anos) e, no centro, a esquecida e ainda viva Alis Lesley.

De volta aos caipiras ianques, Dylan tem especial afeição por Hank Williams (“Your cheatin’ heart”). De vida agitada e breve, morreu de um ataque cardíaco, em 1953, após 29 anos de muito álcool e drogas. Sua importância para a consolidação do que se tornou a música country é equivalente ao papel de Noel Rosa para o samba urbano.

Hank também foi o primeiro “fora da lei” do country. Vertente que, hoje, continua com Willie Nelson (pioneiro ativista pela legalização da maconha). Ainda entre estes, gente que levou o papel de mau a sério, como Johnny Paycheck (autor e intérprete de “Old violin”, 1986). Nascido, em 1938, como Donald Eugene Lytl, emplacou sucessos usando o pseudônimo Donny Young. A partir de 1964, com nova troca de nome, Paychek emplacou mais sucessos, e entradas na prisão: por fazer sexo com uma menor, porte de cocaína, balear um desafeto, dirigir bêbado etc.

Há personagens bizarros de sobra e, também, gritantes ausências. Nada de seus contemporâneos Beatles, Stones, Brian Wilson, Hendrix, Joplin, Stevie Wonder, James Brown, Leonard Cohen... E, claro, sem representante algum de psicodelismo, progressivo, heavy metal, disco, reggae, dance, rap, salsa, reggaeton ou... K-pop.

De sua geração, no pop e no rock, Dylan seleciona The Who (“My generation”), The Fugs (“CIA Man”), The Grateful Dead (“Truckin”), The Allman Brothers (“Midnight rider”), Santana (“Black magic woman”) e Jackson Browne (“The pretender”). Uma década mais novos, revelados em meio à leva punk, estão The Clash (“London Calling”) e Elvis Costello (“Pump it up“).

Tomando parâmetros de equipe ministerial, mulheres são minoria. Apenas quatro cantoras: Judy Garland (“Come rain or come shine”), Rosemary Clooney (“Come on-a my house”), Nina Simone (“Don’t let me be misunderstood”) e Cher (“Gypsys, tramps and thieves”). A representatividade de negros é melhor, 14 intérpretes, e ainda dois não brancos para os padrões dos EUA, o latino Carlos Santana e o já citado indígena John Trudell.

Divórcio e velhice

Em alguns capítulos, o tema da canção leva a devaneios sobre casamento, divórcio, velhice. Em “Cheap to keep her” (Johnnie Taylor, 1973), Dylan pede licença a feministas e, a partir de sua experiência, concorda que é “mais barato manter” (a esposa), e assim fugir de pensões alimentícias. Em “Old and only in the way” (Charlie Poole, 1928), discorre sobre o “senicídio”, o abandono à morte de idosos. Aos 81 anos, Dylan comenta do desprezo com que são tratados os idosos nos EUA. Sobre “Volare”, diz que, provavelmente, é uma das primeiras canções alucinógenas. Certamente, os autores Domenico Modugno e Franco Miglici não tinham essa pretensão, mas Dylan assim entendeu. “Há alguma coisa muito libertadora de ouvir algo num idioma que você não conhece. Vá a uma ópera e o drama te captura mesmo sem entender uma palavra. Escute um fado e a tristeza brota dali mesmo sem falar uma sílaba de português.”

No longo verbete sobre “Black magic woman”, descreve a “mulher negra e mágica”. Em seguida, sem conexão aparente, faz um perfil da escritora de sci-fi e roteirista Leigh Brackett. No terceiro e final trecho, explica o fato de letras aparentemente banais no papel soarem como grande arte quando integradas à música. “Críticos que analisam letras para ironizar a falta de profundidade apenas mostram suas próprias limitações. (...) O que acontece entre palavras e música está próximo da alquimia (...). As pessoas podem continuar tentando fazer música virar ciência, mas, na ciência um mais um sempre vira dois. Música, como toda arte, conta-nos, volta e meia, que um mais um, nas melhores circunstâncias, é igual a três.”

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